domingo, 29 de novembro de 2009

Raça e literatura: o caso Lobato

Indicado para o vestibular da UFSC, O presidente negro, escrito em 1928, antecipou o tipo de pensamento que levaria à exterminação dos judeus



A decisão da Universidade Federal de Santa Catarina, de incluir em sua lista de livros indicados para o exame vestibular de 2009-2010 o romance de Monteiro Lobato O presidente negro (1928), reacende o debate sobre o julgamento político de obras de arte. Esquecido por décadas, a última campanha presidencial americana despertou o interesse pela trama, passada nos Estados Unidos de 2228. Como agora se sabe, o escritor imaginou o terror trazido a uma sociedade majoritariamente branca pela eleição de um candidato negro, que consegue derrotar o presidente em exercício, candidato à reeleição, e a candidata feminista. Chamou a atenção da mídia, inicialmente, a coincidência, já que, devido à demora na definição da candidatura democrata, a campanha durante algum tempo foi tripartite. Mas o livro despertou uma polêmica para além desta coincidência, em vista dos discursos racistas de alguns personagens.

O narrador do romance, Ayrton Lobo, enuncia o que o “porviroscópio”, aparelho de perscrutação do futuro, revelou, tal como lhe fora comunicado pela cientista Jane Benson. Miss Benson, um misto de gênio recluso, beleza e convicção ideológica, colore a narrativa do que vai acontecer em 2228 nos EUA com sua visão de mundo. Seu comentário retira dos fatos futuros o que terão de apenas contingente, e esclarece que a eleição de James Roy Wilde deve-se à divisão dos brancos em dois partidos, o dos homens e o das mulheres (ou “elvinista”), mas também à fatalidade histórica – a luta de raças. Explica, também, a impossibilidade última de o presidente Kerlog e o presidente eleito, Jim Roy, entrarem em acordo, graças à mesma luta racial.

Do ponto de vista ideológico, o ápice da trama é o capítulo 18, em que se encontra o diálogo entre os dois presidentes na véspera da transmissão do cargo. Único branco dentro da trama a ter qualquer contato pessoal com um negro, o presidente Kerlog fica profundamente impressionado com as qualidade intelectuais e morais do interlocutor. Tudo isso, porém, explicado à luz do pensamento racial: o branco vê no negro uma “expressão biológica suprema” tornada possível precisamente pela segregação. O presidente Kerlog é o único branco, no romance, a fazer o elogio de Jim Roy (“expressão racial incoercível a que chamamos condutores de povos”, explica o narrador) e também a enunciar por que os brancos não consentirão em ser governados por um negro. As crenças brotam de um princípio mais profundo: o “Sangue” (em letra maiúscula).

Passemos a palavra a Lobato. No capítulo 18, exorta o presidente Kerlog: “– Pois salvemos a América, Jim! – disse erguendo-se. Açaima tu a pantera negra que meterei luvas nas unhas da águia branca. Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes. – Mas a pantera que conte com o revide da águia!’, continuou o líder branco [...] A águia é cruel!... Jim Roy retesou-se de todos os músculos [ ...] – Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a América ou rompe sua Constituição e afoga-se num mar de sangue ou submete-se ao meu comando? Kerlog olhou-o firma nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina: – [...] Como há razões de Estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o fogo. O sangue não raciocina como os filósofos. [...] Como branco só vejo em ti o inimigo a esmagar.” Conclui Kerlog: “Acima da América está o Sangue. Acima da justiça está o Sangue. O Sangue tem sua justiça. E para a justiça do Sangue Branco é um crime dividir a América.” O protagonista real de O presidente negro, poder-se-ia dizer, é nomeado tardiamente, embora tenha movido as engrenagens da narrativa o tempo todo. Misturam-se no diálogo o desejo dos protagonistas de manter a dignidade do caráter à inevitabilidade biológica da confrontação, mas a questão está decidida desde o começo.

Pensamento racial é aquele que usa a raça como princípio de explicação e ação. Em O presidente negro, a raça é usada para explicar o surgimento de um líder, para explicar o orgulho branco e a ânsia negra de igualdade. Todas as outras supostas fontes são fictícias. Falsa também é a crença em que a cultura e a lei podem prevalecer sobre forças vitais. Talvez, por isso, o racismo do século 20 seja diferente daquele que justificou a escravidão e a colonização. Aqui, há um entrelaçamento entre sangue, alma e raça que desemboca na conclusão de que as visões de mundo das diferentes raças são incompatíveis entre si. O racismo tem consequências práticas e não se detêm até chegar à conclusão: a exclusão mútua das raças. Monteiro Lobato mostrou que a pseudo-lógica do racismo é implacável e só pode levar à conclusão de que é preciso atacar para não ser atacado. É algo parecido os que os teóricos do sangue na Alemanha nazista, como Clauss, concluíram. Ainda que absurda, a hipótese de que o extermínio dos judeus era uma manobra defensiva prevaleceu dentro dos círculos íntimos do nazismo. Hoess, o comandante de Auschwitz, declarou em Nuremberg que Himmler acreditava que os judeus exterminariam os alemães, e por isso era preciso exterminá-los.

Monteiro Lobato antecipou o tipo de pensamento que levaria à exterminação dos judeus, e as coincidências históricas são notáveis. A conferência secreta de Wannsee de 1942 reuniu a cúpula do movimento nazista e determinou o extermínio dos judeus em instalações construídas especialmente para este fim. A “Convenção Branca” de O presidente negro aprova secretamente a “moção Leland” para resolver de vez a questão racial na América. O livro repugna alguns leitores por dar a entender que as simpatias do autor estão do lado do racismo. A defesa da eugenia é posta na boca da personagem mais virtuosa de todas. A ilegalidade e imoralidade da moção Leland quase não merecem comentário. Ayrton Lobo está tão preocupado em seduzir Miss Jane que nem se horroriza com os fatos vindouros que ela revela. Por outro lado, Lobato disse claramente o que o mundo não viu, ou não quis ver até o momento em que já não foi possível ignorar. A seu modo, O presidente negro foi um alerta sobre o que estava por vir. Lobato esclareceu as implicações macabras do pensamento baseado na raça.

Ao ver de alguns, o livro é tão ofensivo que não deveria ser publicado. Ao ver de outros, uma vez publicado, não deveria ser recomendado por um estabelecimento público de ensino. Se recomendado, deveria ter sua recepção previamente dirigida, mediante a advertência de que se trata de obra nociva. A meu ver, a primeira opinião é autoritária. As outras são respeitáveis, mas a meu ver equivocadas. A indicação de leitura de um livro de ficção não significa o endosso destes discursos. Significa que uma obra literária é respeitada como obra de arte, e que ainda por cima é considerada representativa do passado. Mesmo que contenha palavras ofensivas, claramente a intenção da UFSC ao recomendar a leitura do livro não é ofender, mas impedir que um passado em que tais discursos determinaram tantos destinos de vidas seja esquecido.

* Professora de Filosofia na UFSC

POR CLAUDIA DRUCKER *

Retirado de: http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2731454.xml&template=3898.dwt&edition=13620&section=1323

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O hipnotizador

DEBATE ABERTO

O hipnotizador

O mundo (não todo, mas uma boa parte) vive hoje em estado de hipnose e o hipnotizador é Barack Obama. A hipnose consiste numa mudança radical de percepção sobre o que se passa no mundo sem que na realidade haja razões para sustentar tal mudança.

A hipnose é um estado psíquico, induzido artificialmente, em que o hipnotizado, numa condição semelhante à de transe, fica altamente sujeito à influência do hipnotizador. O estado de concentração hipnótica filtra a informação de modo a que ela coincida com as diretivas recebidas. Estas, por sua vez, podem trazer à consciência do hipnotizado memórias por ele suprimidas. A hipnose pode conduzir a atos destrutivos para o próprio ou para outros e, passado o seu efeito, o contacto com a realidade pode ser penoso. O mundo (não todo, mas uma boa parte) vive hoje em estado de hipnose e o hipnotizador é Barack Obama (BO). A hipnose consiste numa mudança radical de percepção sobre o que se passa no mundo sem que na realidade haja razões para sustentar tal mudança. Em que consiste a mudança e donde provêm os poderes hipnóticos de Obama? O que se passará quando o estado de hipnose desvanecer?

A mudança de percepção ocorre em diferentes áreas. A crise financeira global. Mudança: as medidas corajosas de BO para regular o sistema financeiro e assumir o controle de empresas importantes fez com que a crise fosse ultrapassada e a economia retomasse o seu curso. Realidade: BO injectou montantes astronômicos de dinheiro dos contribuintes nos bancos e empresas à beira do colapso sem assumir o controle da sua gestão; não introduziu até agora nenhuma regulação no sistema financeiro; prova disso é o regresso do capitalismo de casino à Wall Street com o banco Goldman Sachs a registar lucros fabulosos obtidos através dos mesmos processos especulativos que levaram à crise, enquanto o desemprego continua a aumentar e os americanos continuam a perder as suas casas por não poderem pagar as hipotecas.

O regresso do multilateralismo. Mudança: BO cortou com o unilateralismo de Bush e os tratados internacionais voltaram a ser respeitados pelos EUA. Realidade: as recentes negociações de Bangkok, que deveriam levar ao reforço do frágil Protocolo de Kyoto sobre as mudanças climáticas, conduziram, por pressão dos EUA, ao resultado oposto com a agravante de terem atenuado as responsabilidades globais dos países desenvolvidos, os grandes responsáveis pela degradação ambiental; os EUA, que não assinaram a Declaração de Durban contra o racismo, auspiciada pela ONU em 2001, voltaram a retirar o seu apoio à declaração sobre a revisão da declaração de Durban elaborada na reunião da ONU de Abril passado em Genebra, arrastando consigo vários países europeus; os EUA desautorizaram o corajoso relatório do Juiz Goldstone sobre os crimes de guerra cometidos por Israel e o Hamas durante a invasão israelense da faixa de Gaza no Inverno de 2008, e, juntamente com Israel, pressionaram a Autoridade Palestiniana a fazer o mesmo.

O fim das guerras. Mudança: BO estendeu a mão da fraternidade e do respeito ao mundo islâmico e vai pôr fim às guerras do Oriente Médio. Realidade: sem dúvida, houve mudança de retórica, mas Guantánamo ainda não encerrou; os generais dizem que a ocupação do Iraque continuará por muitos anos (ainda que os soldados sejam substituídos por mercenários); os pobres camponeses afegãos continuam a ser mortos “por engano” por bombardeiros covardemente não tripulados e as mortes estendem-se já ao Paquistão com consequências imprevisíveis; a burla da ameaça nuclear iraniana continua a ser propalada como verdade; no passado dia 10 de Setembro, BO renovou o estado de emergência, declarado inicialmente por Bush em 2001, sob o pretexto da continuada ameaça terrorista, atribuindo ao Estado poderes que suprimem direitos democráticos dos cidadãos.

As bases militares na Colômbia. Mudança: sem precedentes, BO criticou o golpe de Estado nas Honduras, o que dá garantias de que as sete bases militares a instalar na Colômbia são exclusivamente destinadas à luta contra a droga. Realidade: BO criticou o golpe mas não lhe pôs termo nem retirou o seu embaixador; o alcance dos aviões a estacionar na Colômbia revelam que os verdadeiros objetivos das bases são 1) mostrar ao Brasil que, como potencial regional, não pode rivalizar com o EUA, 2) controlar o acesso aos recursos naturais da região, nomeadamente da Amazônia, 3) dissuadir os governos progressistas da região a terem veleidades socialistas mesmo que democráticas.

Donde provém o poder hipnótico de BO? Da insidiosa presença do colonialismo na constituição político-cultural do mundo. O Presidente negro de tão importante país dá aos fautores históricos do racismo no mundo contemporâneo o conforto de poderem espiar sem esforço a sua culpa histórica, e dá às vítimas do racismo a ilusão credível de que o fim das suas humilhações está próximo.

E o que passará depois da hipnose? BO está preparando-se meticulosamente para governar durante oito anos, fará algumas reformas que melhorarão a vida dos americanos, ainda que ficando muito aquém das promessas (como no caso da reforma do sistema de saúde) e sem nunca pôr em causa a vigência do Estado de mercado; evitará a todo custo “mexer” no conflito Israel/Palestina; manterá a América Latina sob apertado controle; agradará em tudo a China, tal o medo que ela deixe de financiar o american way of life; deixará o Irã onde está e, se puder, sairá do Afeganistão; tudo isto num contexto de crescente declínio econômico dos EUA em parte camuflado pelo aumento das despesas militares algumas delas orientadas para o controlo de conflitos internos.


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4456

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Se dar bem ou fazer o bem?

Samantha Buglione
Segundo estimativa da OAB, se não houvesse prova da Ordem (que é a prova necessária para o bacharel em direito poder advogar), o Brasil teria mais advogados que todo o resto do planeta junto.

Isso diz muito sobre nós. Principalmente porque no Brasil as violações de direito não são mais em função da ausência de leis, como a discriminação entre os sexos, mas sim, de descumprimento de deveres. É a empresa que tem a obrigação de fazer determinada coisa, mas, deliberadamente, não o faz.

É o médico que deveria atender determinado caso, mas por crenças pessoais afirma objeção de consciência e a pessoa fica sem atendimento. É o poder público que privilegia amigos e compadres e, por isso, viola suas obrigações. O Brasil tem ótimas referências normativas, nosso texto constitucional é belíssimo, o problema é a nossa postura. Deveríamos ser o paraíso da garantia de direito considerando o número de bacharéis em direito, advogados e funcionários públicos.

Mas não. Somos uma república democrática viciada no “se dar bem”. A cada dia dou menos aulas na graduação em direito por uma razão muito pessoal: tristeza. Um campo de saber que congrega filosofia e sociologia deveria, ao menos, provocar as pessoas e convencê-las que liberdade tem relação com responsabilidade e dever.

Mas a cada dia aumenta o número de alunos que vão estudar direito para saber como burlar as coisas e “se dar bem”: seja visando a vida de funcionário público, estável e com bom salário, seja descobrindo (ou criando) os caminhos da vida fácil.

As inúmeras críticas ao Poder Judiciário, principalmente por sua morosidade, ignoram um fato fundamental: muitas demandas não deveriam estar lá porque são demandas de pessoas (físicas ou jurídicas) que tinham uma obrigação, mas se negam a cumpri-la. Aí, vão para o Poder Judiciário. Não para buscar seus direitos, mas para legitimar a irresponsabilidade. Uma ação judicial, para quem tem fôlego, é um bom negócio.

Vale mais violar o meio ambiente e discutir na Justiça do que fazer o que se deve. As multas ambientais, por exemplo, por conta do texto legal, quase nunca chegam aos pés dos benefícios que o violador tem, principalmente o grande violador. Aí, enchemos a cidade de espigões, aterramos rios e mangues, fazemos helipontos no meio de um bairro residencial, destruímos a mata atlântica e nos damos bem.

Em outras palavras, violar a lei é um bom negócio. Já a opção por uma postura ética e de fazer o bem nos tira da zona de conforto ou mordomia. O incrível é que, para além do texto legal, todas as religiões pregam a caridade, o respeito ao próximo e a alteridade.

O Brasil se vangloria de ser um País religioso, mas, na prática, coleciona não só descumprimento à lei jurídica como também às leis morais eleitas por cada um no seu credo de fé. Tempos atrás, o homem belo era o homem ético e as pessoas desejavam fincar seu nome na história por meio de belos feitos.

Antigos personagens da história brasileira doaram terras para a construção de parques ou terrenos para se fazer museus. Até hoje são lembrados por serem pessoas que fizeram algo em prol dos outros e da cidade. Hoje, a nossa “nobreza” se contenta em ocupar capas de revistas de fofocas ou colunas de jornais.

Sempre que alguém visa só o “se dar bem”, nos moldes viciados de boa parte do nosso comportamento de hoje, está, imediatamente, rompendo com as possibilidades de fazer o bem. A lógica deveria ser outra, a de fazer o bem e se dar bem por isso. Mas fazer o bem parece palavrão, principalmente quando entendemos que fazer o bem é fazer a ação que beneficie o outro, mesmo que isso não nos traga benefício ou que dê trabalho.

O bem é o bem do sujeito que recebe a ação e não o bem do seu autor. Por isso, impor moralidades não leva, necessariamente, ao bem do outro. Poderíamos fazer tanto, transformar o mundo, mas optamos por sentar na soleira da porta ou na poltrona da TV e assistir ao caos da nossa omissão.

A dica para mudar as coisas más já foi vastamente dada, tanto pelo mundo judaico cristão quanto pelas sábias palavras do Oriente: “ame o próximo como a si mesmo”, “seja a mudança que você quer no mundo”. Sabemos o que fazer, mas, pelo visto, preferimos colecionar vantagens.

Edição: Prof. Christian Messias | Fonte: A Notícia, 20/10/2009 - Joinville SC

terça-feira, 20 de outubro de 2009

'Dupla presidência do CNJ e STF: o Legislativo não vê nenhum senão ético nessa medida'

'Dupla presidência do CNJ e STF: o Legislativo não vê nenhum senão ético nessa medida'

PROFA. DE FILOSOFIA DO DIREITO, HERMENÊUTICA JURÍDICA E ÉTICA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG

Mariá Brochado - O Estado de S.Paulo

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- Na última semana, a imprensa divulgou com certo estranhamento a votação de um projeto de emenda constitucional que altera a forma de composição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que passaria a ser presidido automaticamente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Questiona-se o excesso de poder conferido à autoridade em questão, que passa a ocupar "dupla presidência". Antes de discutir a coerência dessa nova medida, é importante fazer algumas considerações sobre o tão festejado CNJ. Trata-se de um órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário. Suas atividades são administrativas, jamais judiciais; ou seja, o CNJ não interfere nos julgados do Poder Judiciário. Enquanto nos questionamos se a presidência de um poder será a administradora do próprio poder, esquecemo-nos de que o Legislativo está aprovando essa medida, e não o Judiciário. Esquecemo-nos de que nossos representantes (eleitos democraticamente) não veem nenhum senão ético ou moral numa tal medida. O exercício do poder por nossos mandatários é encarado como atividade sobre a qual não se tem interesse, seja por desilusão, absoluto descaso ou falta de educação para se inteirar e participar dos rumos da polis - a cidade, o Estado. Ser político é ser cidadão. No Brasil isso passou a significar uma carreira mais ou menos hereditária. Queremos ser engenheiro, advogado, médico, artista e até celebridade. Mas política não é atividade suficientemente interessante a ponto de levar algum adolescente a idealizá-la como carreira. Nem ao menos frequentamos o Parlamento do País. Esse, sim, é o mais grave de todos os problemas da nossa tão precária vida política. Problemas tais são, ao cabo, sintomas de um triste pano de fundo: a ausência de educação e de formação ética e jurídica do cidadão. Não sabemos reivindicar. Somos "homens cordiais" aguardando as benesses concedidas pelas autoridades. Eis que, ao nos questionarmos sobre a necessidade de um poder fiscalizador do Poder Judiciário, deveríamos antes nos questionar sobre quem vai fiscalizar essa cadeia de fiscalizações. Quem fiscalizará o poder fiscalizador do poder? Somos nós os titulares desse poder. Temos que retomar nossa postura política, de cidadão sabedor de sua posição face aos serviços do Estado.

http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,dupla-presidencia-do-cnj-e-stf-o-legislativo-nao-ve-nenhum-senao-etico-nessa-medida,452399,0.htm

— Celso Naoto Kashiura Júnior — terça-feira, 20 de outubro de 2009 [Crítica Social] Greve e direito

GREVE E DIREITO

O direito de greve está garantido no Brasil. Uma leitura rápida do art. 9º da Constituição Federal de 1988 não deixa dúvida: lá está, límpido e claro, entre os direitos sociais assegurados aos brasileiros. Mas a greve deve ser considerada como muito mais do que simplesmente um direito.

Não fosse a greve, como meio organizado de protesto e de luta dos trabalhadores, as condições mais miseráveis e desumanas de trabalho jamais seriam mudadas. Não que as condições de trabalho sejam, no capitalismo contemporâneo, um “paraíso na terra”, mas se são algo melhores do que as condições do séc. XIX nas fábricas européias, nas quais crianças de 10 anos trabalhavam 16 horas por dia em ambientes insalubres e em troca de centavos por dia, num contexto em que expectativa de vida do trabalhador não passava de 40 anos, isto se deve, sem dúvida, à greve.

O capital não é “bonzinho”, não faz caridade e não tem boas intenções – seu único fim é multiplicar a si mesmo. A conta é, na verdade, bastante simples: quanto menos for entregue ao trabalhador, mais se converte em lucro. Por isso o capital não aumenta salários e não melhora as condições de trabalho “gratuitamente”.

Claro que não faltam aqueles que tentam complicar a equação. Chegam a dizer que o progresso econômico automaticamente cuida de oferecer, pouco a pouco, condições mais dignas aos trabalhadores. Não pode haver ilusão maior. Sem luta, sem greve, não há conquista: as condições de trabalho estariam ainda piores do que há 100 anos e os lucros estariam elevados à última potência.

Mas mesmo com algumas conquistas já asseguradas, com direitos trabalhistas etc., a luta dos trabalhadores não pode cessar. Ainda há muito o que conquistar. E é preciso ter em conta que a luta é cada vez mais difícil. Num contexto em que a precarização do trabalho (isto é, trabalho sem “carteira assinada”) é cada vez mais acentuada, em que o desemprego estrutural é cada vez mais assustador, em que pequenas satisfações pelo consumo tendem a desmobilizar os trabalhadores quanto ao essencial, as possibilidades da greve estão cada vez mais reduzidas.

Na era do e-mail e do caixa eletrônico, a greve dos trabalhadores dos correios ou dos bancários tem cada vez menos impacto. Na era da mecanização, em que algumas máquinas substituem uma multidão de trabalhadores, a greve dos operários pode até ser contornada. É exatamente nesse momento que, não por acaso, a greve é reconhecida como direito.

Para piorar, num momento assim desfavorável ao trabalhador, em que a luta talvez seja necessária como nunca, há ainda quem pense de maneira retrógrada que greve é “coisa de quem não quer trabalhar”. Mas os trabalhadores não devem dar ouvidos a isso. Para que o futuro seja melhor que o presente, é necessário prosseguir com as greves e, mais ainda, encontrar meios de luta que conduzam ainda além

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 14/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 18/10/2009.]

A tutela federal dos direitos humanos no Brasil. Os pressupostos de admissibilidade da federalização

Jus Navigandi Direito Processual Penal » Competência » Incidente deslocamento competência
A tutela federal dos direitos humanos no Brasil. Os pressupostos de admissibilidade da federalização
Renan Paes Felix

Recém criado, o novo dispositivo já recebeu inúmeras críticas, por supostas ofensas ao pacto federativo, ao princípio do juiz natural e por não estabelecer com clareza o seu "modus operandi".
[Leia no site]
Direito Administrativo » Princípios » Publicidade

terça-feira, 30 de junho de 2009

Recomendação de Leitura

http://www.filosofia.com.br/

Um dos melhores sites sobre o conteúdo filosófico. Apresenta um bom suporte, com livros, resenhas e tudo mais do que um leitor e um amante de filosofia buscam.

Oswaldo Porchat/`Os dogmas podem provocar grandes tragédias´

Oswaldo Porchat/`Os dogmas podem provocar grandes tragédias´ Por Alexandre Lyrio

CORREIO DA BAHIA - Como o senhor conseguiu se livrar das amarras da filosofia tradicional, absoluta, dogmática, e passou a refletir mais sobre o cotidiano?

OSWALDO PORCHAT - Eu sempre tive um grande apego à vida cotidiana. Sempre procurei a filosofia que não pairasse nas alturas, mas que valorizasse as coisas comuns e que estivesse ao lado dos homens.

CB - O ceticismo é capaz disso?

OP - A leitura dos céticos gregos me fez ver que as filosofias se enredam em contradições, e que esse é um conflito insanável, sem fim, e sem remédio. Nesse contexto, descobri no ceticismo não apenas a crítica à razão dogmática, mas também a compatibilidade com a vida ordinária do ato cotidiano. O cético grego, ao contrário de tudo que se pensa sobre ceticismo, é tão somente um homem ordinário, comum e que percebe não haver critérios para resolver as disputas das filosofias. O cético entende que nós não temos senão a vida comum pra viver.

CB - Então, as pessoas têm a necessidade de acreditar em algo "maior"?

OP - Vivemos numa fábrica de mitos. Sempre fomos contaminados por uma espécie de doença da razão. O cético não só renuncia a tudo isso como também quer curar o homem do vício na crença nas coisas absolutas e verdades eternas. Somos advogados da vida comum, e ficamos ao lado dela. Não se pode acreditar numa capacidade da razão humana de sair desse mundo e elevar-se a uma realidade considerada verdadeira.

CB - Acreditar no ceticismo não é acreditar numa verdade?

OP - Não há como acreditar no ceticismo já que ele não afirma tese alguma. Ele se apresenta como uma atitude crítica em relação àqueles que pretendem ter a verdade. O cético não diz "não existe a verdade". O cético é muito mais modesto e diz que ainda não descobrimos aquilo que se chama de verdade. Ainda não temos como aceitar um discurso que se pretenda verdadeiro. Nós não afirmamos nada. Apenas descrevemos a nossa incapacidade de encontrar a verdade.

CB - Não havendo verdade absoluta, como se comporta o cético no plano moral ou diante das leis?

OP - O fato de não haver valores absolutos não quer dizer que não haja valores. E também não quer dizer que eles não podem ser superados quando retrógrados. Uma criança formada com um moralismo excessivo pode descobrir na adolescência que aquela norma é um exagero, e que fazer daquilo uma obrigação moral é algo que não se sustenta. Tomemos uma norma criada pela maioria das civilizações: "não matar", por exemplo. O cético se dá conta de como relativa ela é. Nós não precisamos de normas absolutas para não matar, ou para não ser desonesto ou para não ser maldoso ou hipócrita.

CB - As normas não existem para ser seguidas?

OP - Nós, os céticos, também precisamos de normas para agir. Agora, quais normas aceitar e quais não? Não há critérios absolutos para determinar isso. Se uma norma me parece entrar em conflito com outras coisas eu abandono essa norma. Quando se fala que tal norma está sendo seguida, será que o fato de segui-la não é algo prejudicial? É preciso ir em frente com o espírito crítico sem pretender ser o "dono da verdade". Não temos a verdade e talvez não haja verdade nenhuma a ser buscada. Talvez o que haja é uma vida humana a ser construída. Para isso tem que haver inteligência, inventividade e boa vontade.

CB - A mensagem do senhor sempre foi a de "façamos filosofia no Brasil". Não se faz filosofia no país?

OP - São poucos os grupos, como o de ceticismo, que se esforçam para pensar filosoficamente. Ao longo das décadas desenvolveu-se primeiramente no Brasil uma filosofia teoricamente pobre. Introduziu-se o hábito de se estudar a história da filosofia. Eu acho excessiva a ênfase na historiografia no Brasil. Não quero dizer que esses estudos não tenham que ser rigorosos, mas se esqueceu a parte da inventividade da criação filosófica e a formação nas universidades foi dirigida mais para formar historiadores da filosofia do que para fazer os estudantes filosofarem. Ser filósofo pra mim é ter inquietações filosóficas. Sempre estimulei os meus alunos a expor suas idéias, a ousar e a não ter medo de ser criticado.

CB - O senso comum considera o cético um pessimis-ta...

OP - Não acho que o cético seja um pessimista, nem otimista. O cético é um homem comum que não acredita nos delírios da razão para descobrir a verdade. Em vez de querer construir realidades definitivas, ele tenta viver a sua vida, organizando-a da melhor maneira possível. As pessoas têm uma visão caricatural e deformada do ceticismo. Muita gente hoje é cético sem saber.

CB - O que o senhor acredita haver de positivo na natureza humana?

OP - Talvez se possa dizer que haja no ser humano uma certa disposição natural à solidariedade. Um dos maiores filósofos americanos no século XX defendeu que uma certa tendência à solidariedade para com os outros pode ter sido algo adquirido com a evolução da espécie. A solidariedade seria algo favorável à preservação do homo sapiens. O cético não tem nenhuma objeção, a priori, a tal tese evolucionista. Talvez os seres humanos tenham uma disposição genética e até biológica a uma solidariedade.

CB - O senhor passou por algumas etapas até conseguir conciliar filosofia e vida cotidiana. Isso apareceu como uma questão simplesmente teórica ou existencialista particular?

OP - É difícil explicar a origem desse meu interesse pela vida comum. A única coisa que posso dizer é que tive uma formação cristã sólida, abandonada em seguida. A forma de cristianismo da qual eu tive contato valorizava muito os seres humanos. Depois tive uma formação política socialista que ia na mesma direção. Talvez tenha ficado em mim essa marca de igualdade e amor à humanidade. Quando filósofo passei a valorizar a vida comum e não os devaneios do espírito.

CB - A filosofia que interessa ao senhor é aquela que diz respeito à vida das pessoas. De que forma ela pode ajudar no dia-a-dia do homem comum?

OP - Uma das principais funções do que eu chamaria de uma postura filosófica sadia e crítica, que eu acho que é a cética, é conseguir livrar as pessoas de dogmas de qualquer natureza. Dogmas cientificistas, religiosos ou políticos. Mas a solução prática dos problemas humanos não é a filosofia que tem que dar, e sim as organizações criadas pelos próprios homens. A única coisa que a filosofia pode fazer é contribuir para que isso se faça sem dogmas.

CB - A que conseqüências o dogma pode levar se seguido ao extremo?

OP - Quando transformados em fundamentos de um regime ou de um grupo, os dogmas podem ser responsáveis por grandes tragédias, inclusive. A raça superior, a religião superior, a verdade contra os infiéis. Hoje temos o fundamentalismo cristão e os fundamentalismos árabe e judaico. Muitas vezes, como na política americana de Bush, esse fundamentalismo está acoplado a interesses econômicos. Já o fundamentalismo de Bin Laden, por exemplo, é religioso pura e simples.

CB - É positivo duvidar de todo e qualquer discurso?

OP - Por mais sedutor que um discurso lhe pareça deve-se considerar que se trata de algo a ser submetido a diálogos, discussões e debates. Estar com o pé atrás é examinar criticamente todo e qualquer discurso, mesmo que ele esteja envolto numa retórica impecável. Mas não há fé na linguagem. Quem tem uma boa formação filosófica cética e sadia não acredita facilmente em alguma coisa ou num discurso. O que não quer dizer que vai recusá-lo. A consciência de que não há critérios definitivos absolutos me parece algo muito positivo.

CB - O senhor disse que teve uma formação cristã. O senhor acredita em Deus?

OP - Eu diria que não vejo, se nós pensamos criticamente, elementos para afirmar a existência de Deus.

Retirado de: http://www.filosofia.com.br/vi_jornal.php?id=12

Trilha de contradições - Por Lya Luft


"Convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado"


"Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce." Já escrevi sobre essa frase. Sim, repito alguns temas, que são parte do meu repertório, pois todo escritor, todo pintor, tem seus temas recorrentes. No alto dessa escada nos seduzem novidades e nos angustia o excesso de ofertas. Para baixo nos convocam a futilidade, o desalento ou o esquecimento nas drogas. Na dura obrigação de ser "felizes", embora ninguém saiba o que isso significa, nossos enganos nos dirigem com mão firme numa trilha de contradições.



Apregoa-se a liberdade, mas somos escravos de mil deveres. Oferecem-nos múltiplos bens, mas queremos mais. Em toda esquina novas atrações, e continuamos insatisfeitos. Desejamos permanência, e nos empenhamos em destruir. Nós nos consideramos modernos, mas sufocamos debaixo dos preconceitos, pois esta nossa sociedade, que se diz libertária, é um corredor com janelinhas de cela onde aprisionamos corpo e alma. A gente se imagina moderno, mas veste a camisa de força da ignorância e da alienação, na obrigação do "ter de": ter de ser bonito, rico, famoso, animadíssimo, ter de aparecer – que canseira.

Como ficcionista, meu trabalho é inventar histórias; como colunista, é observar a realidade, ver o que fazemos e como somos. A maior parte de nós nasce e morre sem pensar em nenhuma das questões de que falei acima, ou sem jamais ouvir falar nelas. Questionar dá trabalho, é sem graça, e não adianta nada, pensamos. Tudo parece se resumir em nascer, trabalhar, arcar com dívidas financeiras e emocionais, lutar para se enquadrar em modelos absurdos que nos são impostos. Às vezes, pode-se produzir algo de positivo, como uma lavoura, uma família, uma refeição, um negócio honesto, uma cura, um bem para a comunidade, um gesto amigo.

Mas cadê tempo e disposição, se o tumulto bate à nossa porta, os desastres se acumulam – a crise e as crises, pouca trégua e nenhuma misericórdia. Angústias da nossa contraditória cultura: nunca cozinhar foi tão chique, nunca houve tantas delícias, mas comer é proibido, pois engorda ou aumenta o colesterol. Nunca se falou tanto em sexo, mas estamos desinteressados, exaustos demais, com medo de doenças. O jeito seria parar e refletir, reformular algumas coisas, deletar outras – criar novas, também. Mas, nessa corrida, parar para pensar é um luxo, um susto, uma excentricidade, quando devia ser coisa cotidiana como o café e o pão. Para alguns, a maioria talvez, refletir dá melancolia, ficar quieto é como estar doente, é incômodo, é chato: "Parar para pensar? Nem pensar! Se fizer isso eu desmorono". Para que questionar a desordem e os males todos, para que sair da rotina e querer descobrir um sentido para a vida, até mesmo curtir o belo e o bom, que talvez existam? Pois, se for ilusão, a gente perdeu um precioso tempo com essa bobajada, e aí o ônibus passou, o bar fechou, a festa acabou, a mulher fugiu, o marido se matou, o filho... nem falar.

Então vamos ao nosso grande recurso: a bolsinha de medicamentos. A pílula para dormir e a outra para acordar, a pílula contra depressão (que nos tira a libido) e a outra para compensar isso (que nos rouba a naturalidade), e aquela que ninguém sabe para que serve, mas que todo mundo toma. Fingindo não estar nem aí, parecemos modernos e espertos, e queremos o máximo: que para alguns é enganar os outros; para estes, é grana e poder, beleza e prestígio; para aqueles, é delírio e esquecimento.

Para uns poucos, é realizar alguma coisa útil, ser honrado, apreciar a natureza, sentir o calor humano e partilhar afeto. Mas, em geral medicados, padronizados, desesperados, medíocres ou heroicos, amorosos ou perversos, nos achando o máximo ou nos sentindo um lixo, carregamos a mala da culpa e a mochila da ansiedade. Refletindo, veríamos que somos apenas humanos, e que nisso existe alguma grandeza. Mas, convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado.
Lya Luft é escritora

Fonte: Revista Veja - Edição 2119 - 1 de Julho de 2009

Inventores Contemporâneos no Brasil.

Inventaram o pedágio, a bolsa escola, a roda e o fogo no Brasil...

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Blog CAAM

O agregamento do deste blog ao blog CAAM ( Centro Acadêmico Alysson Mascaro ) é motivo de grande honra e satisfação. O blog CAAM é reflexo do Centro Acadêmico das Faculdades Integradas Padre Albino - Direto, que sempre lutou com a verdade e continua a sua luta.

Os componentes do Centro Acadêmico são estudantes que em sua maioria adotam a postura de esquerda, e também por consequência disso surge a verdade nas suas lutas. O espirito aguerrido de seus membros é e sempre será exaltado por esse blog, e servindo como mero agregador e parceiro em qualquer de seus movimentos.

O referido blog se encontra no endereço : www.blogcaam.blogspot.com.

O caso de Veja por Luís Nassif

O maior fenômeno de anti-jornalismo dos últimos anos foi o que ocorreu com a revista Veja.Gradativamente, o maior semanário brasileiro foi se transformando em um pasquim sem compromisso com o jornalismo, recorrendo a ataques desqualificadores contra quem atravessasse seu caminho, envolvendo-se em guerras comerciais e aceitando que suas páginas e sites abrigassem matérias e colunas do mais puro esgoto jornalístico.

Para entender o que se passou com a revista nesse período, é necessário juntar um conjunto de peças.

O primeiro conjunto são as mudanças estruturais que a mídia vem atravessando em todo mundo.

O segundo, a maneira como esses processos se refletiram na crise política brasileira e nas grandes disputas empresariais, a partir do advento dos banqueiros de negócio que sobem à cena política e econômica na última década..

A terceira, as características específicas da revista Veja, e as mudanças pelas quais passou nos últimos anos.

O estilo neocon

De um lado há fenômenos gerais que modificaram profundamente a imprensa mundial nos últimos anos. A linguagem ofensiva, herança dos “neocons” americanos, foi adotada por parte da imprensa brasileira como se fosse a última moda.

Durante todos os anos 90, Veja havia desenvolvido um estilo jornalístico onde campeavam alusões a defeitos físicos, agressões e manipulação de declarações de fonte. Quando o estilo “neocon” ganhou espaço nos EUA, não foi difícil à revista radicalizar seu próprio estilo.

Um segundo fenômeno desse período foi a identificação de uma profunda antipatia da chamada classe média mídiatica em relação ao governo Lula, fruto dos escândalos do “mensalão”, do deslumbramento inicial dos petistas que ascenderam ao poder, agravado por um forte preconceito de classe. Esse sentimento combinava com a catarse proporcionada pelo estilo “neocon”. Outros colunistas utilizaram com talento – como Arnaldo Jabor -, nenhum com a fúria grosseira com que Veja enveredou pelos novos caminhos jornalísticos.

O jornalismo e os negócios

Outro fenômeno recorrente – esse ainda nos anos 90 -- foi o da terceirização das denúncias e o uso de notas como ferramenta para disputas empresariais e jurídicas.

A marketinização da notícia, a falta de estrutura e de talento para a reportagem tornaram muitos jornalistas meros receptadores de dossiês preparados por lobistas.

Ao longo de toda a década, esse tipo de jogo criou uma promiscuidade perigosa entre jornalistas e lobistas. Havia um círculo férreo, que afetou em muitos as revistas semanais. E um personagem que passou a cumprir, nas redações, o papel sujo antes desempenhado pelos repórteres policiais: os chamados repórteres de dossiês.

Consistia no seguinte:

O lobista procurava o repórter com um dossiê que interessava para seus negócios.

O jornalista levava a matéria à direção, e, com a repercussão da denúncia ganhava status profissional.

Com esse status ele ganhava liberdade para novas denúncias. E aí passava a entrar no mundo de interesses do lobista.

O caso mais exemplar ocorreu na própria Veja, com o lobista APS (Alexandre Paes Santos).

Durante muito tempo abasteceu a revista com escândalos. Tempos depois, a Policia Federal deu uma batida em seu escritório e apreendeu uma agenda com telefones de muitos políticos. Resultou em uma capa escandalosa na própria Veja em 24 de janeiro de 2001 (clique aqui) em que se acusavam desde assessores do Ministro da Saúde José Serra de tentar achacar o presidente da Novartis, até o banqueiro Daniel Dantas e o empresário Nelson Tanure de atuarem através do lobista.

Na edição seguinte, todos os envolvidos na capa enviaram cartas negando os episódios mencionados. Foram publicadas sem que fossem contestadas.

O que a matéria deixou de relatar é que, na agenda do lobista, aparecia o nome de uma editora da revista - a mesma que publicara as maiores denúncias fornecidas por ele. A informação acabou vazando através do Correio Braziliense, em matéria dos repórteres Ugo Brafa e Ricardo Leopoldo.

A editora foi demitida no dia 9 de novembro, mas só após o escândalo ter se tornado público.

Antes disso, em 27 de junho de 2001(clique aqui) Veja publicou uma capa com a transcrição de grampos envolvendo Nelson Tanure. Um dos “grampeados” era o jornalista Ricardo Boechat. O grampo chegou à revista através de lobistas e custou o emprego de Boechat, apesar de não ter revelado nenhuma irregularidade de sua parte.

Graças ao escândalo, o editor responsável pela matéria ganhou prestígio profissional na editora e foi nomeado diretor da revista Exame. Tempos depois foi afastado, após a Abril ter descoberto que a revista passou a ser utilizada para notas que não seguiam critérios estritamente jornalísticos.

Um dos boxes da matéria falava sobre as relações entre jornalismo e judiciário.

O boxe refletia, com exatidão, as relações que, anos depois, juntariam Dantas e a revista, sob nova direção: notas plantadas servindo como ferramenta para guerras empresariais, policiais e disputas jurídicas.

domingo, 26 de abril de 2009

Maierovitch: O objetivo é afastar Barbosa do TSE

Atualizado em 26 de abril de 2009 às 18:52 Publicado em 26 de abril de 2009 às 18:50
Mendes x Barbosa: desencontro longe do fim. Especulações sobre o comando das eleições em 2010
por Wálter Maierovitch O ministro Mendes continua a entender que o seu par Barbosa não julga a lide, a controvérsia, existente nos autos processuais.
Na sua visão, o ministro Barbosa julga conforme o interesse de um estamento social, para o qual se inclina e protege.
Bastou essa infeliz colação do ministro Mendes para se iniciar uma grande especulação sobre a futura presidência do ministro Barbosa, à frente do Tribunal Superior Eleitoral, na condução das eleições de 2010.
Para o ministro Barbosa, –com todo o acerto–, o presidente do Supremo Tribunal Federal, não é o juiz dos juízes. Não tem poder para censurar qualquer dos seus pares.
Em síntese, o ministro Barbosa julga conforme a sua consciência e o solene compromisso, –quando da sua investidura no cargo–, de seguir a Constituição e as leis.
Nenhum dos dois ministros, –que protagonizaram o lamentável episódio de grande repercussão e que em “post” chamamos de “Barraco Supremo”–, recua um único passo no sentido de admitir erros e excessos. Sobre isso, deixa claro matéria de hoje do jornal Folha de S.Paulo.
A respeito da repercussão do “Supremo Barraco”, ela continua por todos os cantos do país.
Até no You Tube apareceu o “Créu do Barbosão”. Por meio do deboche, ficou claro a conseqüência do transbordamento da sessão do Supremo Tribunal Federal (STF).
A provocação, com ato de censura, foi iniciada pelo ministro Gilmar Mendes. Até então, havia divergência, ainda que acirrada.
O ministro Mendes não se convence quanto a não poder tecer considerações públicas (em sessões de julgamento) de natureza censória. E é do seu hábito se exceder, inclusive na presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Mendes não tem poder de censura sobre o convencimento de um seu par. Não lhe é permitido formular juízo sobre outro ministro fora da discussão jurídica em questão, isto para não cair no ataque pessoal. Em outras palavras, Gilmar não pode se posicionar,– como fazia o inquisidor Torquemada–, nos ataques ao pensamento alheio e divergente do seu.
Vários dos pares do ministro Mendes no CNJ o consideram prepotente, “dono da verdade” e incapaz de ouvir e refletir sobre posicionamentos contrários aos que sustenta. Como desabafou um conselheiro do CNJ e os jornais ecoaram, o ministro Gilmar nem presta atenção sobre discussões, divergências.
O ministro Barbosa, –no episódio inédito ao qual chamamos em “post” anterior de “Barraco Supremo”–, foi provocado e usou daquilo que em Direito se chama de retorsão imediata.
Só que o ministro Barbosa cometeu, na retorsão, excesso de linguagem, ainda que tenha dito verdades. Ou seja, o ministro Mendes destrói a imagem da Justiça, pois prejulga, fala fora dos autos e se intromete em questões políticas, que não estão na sua alçada: disse até que chamaria o presidente Lula às falas. Fora a exigência de afastamento do delegado Paulo Lacerda, por um “grampo telefônico” até agora sem prova da materialidade: pura invenção, até o momento.
Nos tribunais, o julgamento é colegiado. Prevalece no julgamento a decisão da maioria, conforme regra básica num Estado democrático de direito.
As divergências jurídicas e factuais, debatidas num julgamento, são balizadas pela controvérsia (lide) presente nos autos.
Divergências e considerações fora do tema em debate nos autos processuais implicam em reprovação pessoal, censura própria de mentes autoritárias e que desrespeitam a Justiça.
PANO RÁPIDO. Pelo andar da carruagem, dias piores virão. Já que “tapas e barracos” não representam forma civilizada de solução de contendas, em breve, –e se o ministro Mendes insistir em censurar e continuar com ataques pessoais–, a solução virá num processo (forma civilizada) por danos morais. Felizmente, o ministro Barbosa não é de “afinar” aos poderosos.
Sobre eleições de 2010, a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e mantida a regra de escolha que recai na rotatividade estará afeta ao ministro Barbosa. Só que já começou um guerra surda para mudar a regra e saltar Barbosa. Sintomático, no particular, o apoio do partido Democrata (DEM) a Gilmar Mendes, no episódio do “Barraco Supremo”.
Já se começa a espalhar que Barbosa inclina-se para o lado dos petistas. Ou seja, um ataque infundado à sua isenção. E a meta é inviabilizar a sua escolha à presidência do TSE. Como se percebe, a elite não gosta de independentes como Barbosa, mas de engajados. Wálter Fanganiello Maierovitchhttp://maierovitch.blog.terra.com.br/

sábado, 25 de abril de 2009

A Folha vai dar a outros candidatos o tratamento que dispensa à Dilma ?

A Folha (*) publicou hoje na primeira página uma notícia errada, em off, sobre o câncer da ministra Dilma Rousseff. Errada, porque não disse que era câncer.
Isso não é notícia que se dê em off.
Dar a entender que alguém tem câncer sem que a informação seja do doente, do medido ou do hospital.
Faz parte do jornalismo de quinta categoria que a Folha pratica. Muito parecido com a forma com que os adversários políticos vazaram para a imprensa que o candidato à presidência da República Mário Covas estava com câncer.
Segundo o que dizem os médicos de um hospital que deixa vazar uma informação dessa gravidade, a candidata do presidente Lula a presidência da República tem, hoje, depois de totalmente extirpado o câncer, tanta chance de ter outro câncer quanto qualquer pessoa.
A edição de hoje da Folha deve ser conservada em formol, porque se trata de uma antologia do jornalismo em decomposição que se pratica nesta subdemocracia.
Dois ou três domingos atrás a Folha praticou a fraude de sustentar, com apoio de uma ficha policial falsa, que um inexistente seqüestro de Delfim Netto poderia ser imputado às maquinações diabólicas da terrorista Dilma Rousseff. Isso foi num domingo, dia em que a tiragem da Folha é maior. Hoje, numa página par, menos lida, num dia de sábado, a Folha confessa que a “reportagem” era uma fraude: a ficha é falsa e não veio do DOPS, mas por e-mail de um leitor.
Quer dizer, o controle de qualidade da Folha vale tanto quanto o de um botequim de beira da estrada.
A Folha, se fosse séria, deveria perguntar a Zé Pedágio, membro da Ação Popular, se participou do atentado a bomba ao aeroporto Guararapes, em Recife, praticado pela AP.
Se fosse séria, a Folha deveria perguntar se Aloysio Nunes Ferreira, candidato a governador de José Serra, assaltava ou ainda assalta bancos. Se fosse séria, a Folha passaria a dispensar o mesmo tratamento leviano sobre as doenças graves dos outros candidatos a presidente, se é que existem.
E poderia valer-se do sistema de preservação de confidencialidade que caracterizou o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Paulo Henrique Amorim
Em tempo: dirão os tucanos de plantão que a Folha cumpriu o dever cívico de divulgar uma informação que Dilma Rousseff provavelmente omitiria. Que é o mesmo que acreditar que numa situação comparável José Serra também cometesse o pecado da omissão. Os brasileiros e especialmente os eleitores paulistas não têm o direito de fazer essa suposição em um e no outro caso.
Em tempo 2: quando “noticiou” a ligação entre Dilma e o “seqüestro” de Delfim, a Folha honrou a fraude com o alto da primeira página do domingo. A confissão da fraude não pereceu a primeira página da edição de sábado.
(*) Já estava na hora de a Folha tirar os cães de guarda do armário e confessar que foi “Cão de Guarda” do regime militar. Instigado pelo Azenha – clique aqui para ir ao Viomundo – acabei de ler o excelente livro “Cães de Guarda – jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1989”, de Beatriz Kushnir, Boitempo Editorial, que trata das relações especiais da Folha (e a Folha da Tarde) com a repressão dos anos militares. Octavio Frias Filho, publisher da Folha (da Tarde), não quis dar entrevista a Kushnir.

Retirado de :http://www2.paulohenriqueamorim.com.br/?p=9628

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Degradação no Judiciário

DALMO DE ABREU DALLARI

Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.

Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética.

Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.

Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num sistema democrático.

Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente -pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país.

É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da República pela prática de ilegalidades e corrupção.

É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo especializou-se em "inventar" soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, "inventaram" uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.

Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.

Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um "manicômio judiciário".

Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em artigo publicado no "Informe", veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e objetivo, significativamente intitulado "Manicômio Judiciário" e assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que "não são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo".

E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na "indústria de liminares".

A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um problema ético. Revelou a revista "Época" (22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na "reputação ilibada", exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo.

A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou "ação entre amigos". É assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática.

Dalmo de Abreu Dallari, 70, advogado, é professor da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios do município de São Paulo (administração Luiza Erundina).

http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/memoria-dallari-detona-gilmar/ --Postado por Observações do Cotidiano no Observações do Cotidiano em 4/23/2009 11:54:00 P

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Um sistema penal global é possível?

Em fevereiro, um escândalo envolvendo sonegação fiscal causou mal estar nas relações entre Alemanha e Suíça. Bancos alemães estariam usando instituições financeiras do pequeno principado de Liechtenstein para repassar aplicações de milionários a bancos suíços. A manobra visava usufruir o inexpugnável sigilo bancário suíço, livrando assim alguns alemães do fisco de seu país. Esse episódio mostra apenas uma dentre milhares de arestas a serem aparadas para que o processo de globalização não passe por cima das legislações de cada nação. Afinal, como punir ações idênticas se cada país as enxerga de modo diferente? Ao contrário da Alemanha, por exemplo, sonegação fiscal não é crime na Suíça, apenas uma contravenção sujeita à multa. Embora a Suíça não faça parte da União Européia, é notório que episódios assim aconteçam até no continente que mais avançou nas unificações supranacionais, a Europa. Que unificação penal, então, podemos esperar do restante do planeta?A resposta pode passar pelo maior incentivador dos acordos e tratados internacionais, o dinheiro e, não por acaso, também o pivô da crise citada acima. “Para participar de um mercado mundial, os países têm que estabelecer regras comuns entre si. Por isso, é natural que o direito comercial acabe auxiliando nesse consenso”, pontua Alberto do Amaral Júnior, da área de direito internacional da Faculdade de Direito da USP. As regras que regulamentam as transações comerciais mundiais acabam contendo também as penalidades para quem as infringe. Ao lado das leis comerciais, os crimes contra a humanidade, o combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo são as áreas que mais têm encontrado pontos de convergência entre os países para a construção de um sistema penal global, segundo os especialistas.Porém, antes de estabelecer punições semelhantes, os países teriam de reconhecer como crimes os mesmos atos, o que poderia mexer em questões culturais de cada lugar. “As leis refletem os valores dominantes em cada sociedade”, explica Amaral, “são esses valores que determinam quais serão as condutas consideradas indesejáveis, o seu grau de gravidade e as respectivas punições para cada uma”. Por isso, o especialista considera que um tribunal penal único só seria possível se houvesse um Estado mundial federalizado o que, segundo acredita, é pouco provável. Atualmente, a instância que mais se assemelha a uma corte criminal suprema do planeta é o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado em 1998 com o Estatuto de Roma e que hoje conta com o reconhecimento de 105 países, entre eles o Brasil.O TPI é a primeira instituição penal e global permanente da história. Antes dele, crimes de grande repercussão eram julgados por tribunais especiais provisórios, cujo mais famoso é o de Nuremberg que julgou nazistas após a Segunda Guerra Mundial. O TPI representa um avanço no consenso penal entre a maioria das nações porque dá um código único para todos os países signatários, conforme explica Salo de Carvalho, especialista em Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: “A interpretação de qualquer texto gera conflitos, mas os problemas aumentam quando se trabalha com textos distintos e autônomos, de legislações de diferentes países. Exatamente por isso o Estatuto de Roma cria legislação penal e processual própria, harmonizando distintos sistemas”.Embora o TPI seja um passo importante na unificação do sistema penal mundial, a sua alçada é bem restrita, pois só julga crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade. Outro fator relevante é que, ao contrário da Corte Internacional de Justiça (CIJ) da Organização das Nações Unidas, o TPI não julga Estados, mas indivíduos, e só atua quando um país não puder ou não quiser julgar um crime que tenha ocorrido sob sua jurisdição. Tanto o TPI como a CIJ estão sediados na cidade holandesa de Haia.Globalização dos crimesPara muitos especialistas, o processo de globalização faz com que os consensos na área penal sejam mais do que uma simples escolha para as nações, mas uma questão de necessidade. Os transportes e os meios de comunicação modernos levam velozmente crimes e criminosos além das fronteiras geográficas, o que atinge um dos princípios mais básicos do direito, o da territorialidade. “Esse princípio é uma decorrência da idéia de soberania, ou seja, um crime é julgado pelo Estado que tem soberania sobre o território onde o delito foi cometido. Podemos resumir isso na frase: ‘no meu quintal mando eu’”, explica Carlos Eduardo Japiassú, secretário geral adjunto da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Segundo ele, é somente a partir do século XIX que começa a aparecer, nos códigos penais, o conceito de extraterritorialidade, ou seja, a previsão da aplicação das leis de um país mesmo em caso crimes cometidos fora dele. O objetivo era evitar que surgissem casos como o de Jesse James nos Estados Unidos do século XIX. “Era um fazendeiro em um estado e bandido em meia dúzia de outros”, exemplifica Japiassú. Isso foi possível porque os estados norte-americanos possuem relativa autonomia para elaborar os seus próprios códigos penais.Na última década do século XX, o fim da Guerra Fria, e a conseqüente extinção da bipolaridade comunismo-capitalismo, abriu possibilidades para a criação de juízos universais que serviram de ponto de partida, segundo Japiassú, para a elaboração dos chamados sistemas globais de punição. Lavagem de dinheiro e terrorismo são os maiores exemplos de crimes que geraram modelos de códigos penais parecidos em vários países do mundo, mesmo sem haver a criação de uma instituição mundial, como foi o caso do TPI. Em 1999 o G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá), grupo dos sete países mais ricos do mundo, criou o Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (Gafi), com sede em Paris. O Gafi elaborou uma série de recomendações aos países para dificultar o usufruto do dinheiro oriundo do crime. Como conseqüência, várias nações começaram a adotar as medidas do Gafi a fim de que não figurassem em listas negras de instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo.Unificação das puniçõesApós o reconhecimento dos mesmos crimes, o segundo passo que as nações têm de dar para unificar o sistema penal é estabelecer penas semelhantes. Nesse ponto, os obstáculos são consideráveis e, muitas vezes, são expostos nos processos de extradição. Para extraditar um criminoso, por exemplo, o Brasil exige um compromisso do país-destino para garantir que o extraditado não receba uma punição não prevista no código penal brasileiro. Isso já criou empecilhos em extradições para países que prevêem a pena de morte ou a prisão perpétua, por exemplo. Aqui, a pena de morte é prevista somente em situação de guerra declarada e a pena máxima de detenção é de 30 anos.Paradoxalmente, apesar de não prever a prisão perpétua, o prisioneiro brasileiro passa mais anos no xadrez do que os condenados dos países europeus que adotam essa pena. “Em muitos países da Europa em que há prisão perpétua é prevista uma revisão de pena após 25 anos, e o detento pode ser até libertado”, esclarece Japiassú. No Brasil, os anos de prisão vão se somando de acordo com o número de crimes com que o réu for condenado. Na prática, o período de detenção brasileiro pode ultrapassar a expectativa de vida do prisioneiro, o que acaba se tornando uma prisão perpétua velada.Se as diferenças na punição são notórias entre países que partilham tradições jurídicas semelhantes, o abismo se torna muito maior se compararmos nações com culturas ainda mais distintas. O jovem norte-americano Michael Fay sentiu na pele essa diferença cultural. Flagrado em 1994 pichando muros em Cingapura, onde vivia, o rapaz foi condenado a seis meses de cadeia, a uma multa de cerca de US$2.200,00 e a seis chibatadas nas nádegas. Os apelos do governo norte-americano para que a pena corporal fosse substituída só conseguiu reduzir o número de chibatadas para quatro. Os castigos físicos são apenas um ponto a ser equacionado nas diferenças étnicas e culturais. Países como a Arábia Saudita, baseados em interpretações próprias de ensinamentos islâmicos, mantém uma forte discriminação contra a mulher, por exemplo, um fato que inviabiliza o diálogo jurídico com a maioria das nações ocidentais.E mesmo a comunhão de leis e de penas entre os países não garante um ponto fundamental na justiça, a execução da punição, como lembra o especialista em direito internacional André de Carvalho Ramos, da Universidade Bandeirante de São Paulo e autor de vários livros sobre direitos humanos. “No Brasil, a taxa de eficiência da lei é baixíssima”, observa, o que significa que compactuar com um código penal não é suficiente para que ele seja cumprido. “Reconhecer e tipificar os mesmos crimes e estabelecer penas proporcionais não terá efeito se não houver também um esforço mundial para se fazer cumprir as leis”, acredita Ramos. Sistemas judiciários lentos e ineficazes como o brasileiro, servem de exemplo negativo para o mundo. Mas a impunidade também tem outra origem, especialmente quando falamos de justiça mundial. “Pune quem pode punir”, afirma Carlos Eduardo Japiassú, “Caso o presidente dos Estados Unidos seja condenado por uma corte internacional, por exemplo, quem o fará cumprir a pena?” exemplifica, deixando claro que fazer cumprir uma punição pressupõe poder.Mesmo com todos esses empecilhos, as instituições e os acordos penais internacionais têm contribuído para a diminuição da impunidade no mundo. Um exemplo recente foi a condenação do Brasil em 2006, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Estado respondeu pela morte de Damião Ximenes Lopes, morto brutalmente enquanto estava internado numa clínica psiquiátrica em Sobral (CE). O governo brasileiro foi sentenciado a pagar US$146 mil à família de Lopes, por sua omissão em fiscalizar o estabelecimento em que a vítima estava internada. Casos como esse mostram que mesmo que não surja um consenso mundial no assunto, os esforços atuais têm obtido resultados importantes que vão desde dificultar o trabalho de criminosos internacionais até “puxar as orelhas” das nações que não fazem o “dever de casa”.http://blog.controversia.com.br/2009/04/21/um-sistema-penal-global-possvel/

quarta-feira, 22 de abril de 2009

MST desmente Globo. Pena enésima vez

-- Retirado de www.paulohenriqueamorim.com.br

O Conversa Afiada reproduz abaixo nota de esclarecimento do MST sobre reportagem da TV Globo:
MST ESCLARECE ACONTECIMENTOS OCORRIDOS NO PARÁ20/04/2009
Em relação ao episódio na região de Xinguara e Eldorado de Carajás, no sul do Pará, o MST esclarece que os trabalhadores rurais acampados foram vítimas da violência da segurança da Agropecuária Santa Bárbara. Os Sem Terra não pretendiam fazer a ocupação da sede da fazenda nem fizeram reféns. Nenhum jornalista nem a advogada do grupo foram feitos reféns pelos acampados, que apenas fecharam a PA-150 em protesto pela liberação de três trabalhadores rurais detidos pelos seguranças. Os jornalistas permaneceram dentro da sede fazenda por vontade própria, como sustenta a Polícia Militar. Esclarecemos também que:
1- No sábado (18/4) pela manhã, 20 trabalhadores Sem Terra entraram na mata para pegar lenha e palha para reforçar os barracos do acampamento em parte da Fazenda Espírito Santo, que estão danificados por conta das chuvas que assolam a região. A fazenda, que pertence à Agropecuária Santa Bárbara, do Banco Opportunity, está ocupada desde fevereiro, em protesto que denuncia que a área é devoluta. Depois de recolherem os materiais, passou um funcionário da fazenda com um caminhão. Os Sem Terra o pararam na entrada da fazenda e falaram que precisavam buscar as palhas. O motorista disse que poderia dar uma carona e mandou a turma subir, se disponibilizando a levar a palha e a lenha até o acampamento.
2- O motorista avisou os seguranças da fazenda, que chegaram quando os trabalhadores rurais estavam carregando o caminhão. Os seguranças chegaram armados e passaram a ameaçar os Sem Terra. O trabalhador rural Djalme Ferreira Silva foi obrigado a deitar no chão, enquanto os outros conseguiram fugir. O Sem Terra foi preso, humilhado e espancado pelos seguranças da fazenda de Daniel Dantas.
3- Os trabalhadores Sem Terra que conseguiram fugir voltaram para o acampamento, que tem 120 famílias, sem o companheiro Djalme. Avisaram os companheiros do acampamento, que resolveram ir até o local da guarita dos seguranças para resgatar o trabalhador rural detido. Logo depois, receberam a informação de que o companheiro tinha sido liberado. No período em que ficou detido, os seguranças mostraram uma lista de militantes do MST e mandaram-no indicar onde estavam. Depois, os seguranças mandaram uma ameaça por Djalme: vão matar todas as lideranças do acampamento.
4- Sem a palha e a lenha, os trabalhadores Sem Terra precisavam voltar à outra parte da fazenda para pegar os materiais que já estavam separados. Por isso, organizaram uma marcha e voltaram para retirar a palha e lenha, para demonstrar que não iam aceitar as ameaças. Os jornalistas, que estavam na sede da Agropecuária Santa Bárbara, acompanharam o final da caminhada dos marchantes, que pediram para eles ficarem à frente para não atrapalhar a marcha. Não havia a intenção de fazer os jornalistas de “escudo humano”, até porque os trabalhadores não sabiam como seriam recebidos pelos seguranças. Aliás, os jornalistas que estavam no local foram levados de avião pela Agropecuária Santa Bárbara, o que demonstra que tinham tramado uma emboscada.
5- Os trabalhadores do MST não estavam armados e levavam apenas instrumentos de trabalho e bandeiras do movimento. Apenas um posseiro, que vive em outro acampamento na região, estava com uma espingarda. Quando a marcha chegou à guarita dos seguranças, os trabalhadores Sem Terra foram recebidos a bala e saíram correndo – como mostram as imagens veiculadas pela TV Globo. Não houve um tiroteio, mas uma tentativa de massacre dos Sem Terra pelos seguranças da Agropecuária Santa Bárbara.
6- Nove trabalhadores rurais ficaram feridos pelos seguranças da Agropecuária Santa Bárbara. O Sem Terra Valdecir Nunes Castro, conhecido como Índio, está em estado grave. Ele levou quatro tiros, no estômago, pulmão, intestino e tem uma bala alojada no coração. Depois de atirar contra os Sem Terra, os seguranças fizeram três reféns. Foram presos José Leal da Luz, Jerônimo Ribeiro e Índio.
7- Sem ter informações dos três companheiros que estavam sob o poder dos seguranças, os trabalhadores acampados informaram a Polícia Militar. Em torno das 19h30, os acampados fecharam a rodovia PA 150, na frente do acampamento, em protesto pela liberação dos três companheiros que foram feitos reféns. Repetimos: nenhum jornalista nem a advogada do grupo foram feitos reféns pelos acampados, mas permaneceram dentro da sede fazenda por vontade própria. Os sem-terra apenas fecharam a rodovia em protesto pela liberação dos três trabalhadores rurais feridos, como sustenta a Polícia Militar.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA - PARÁ

Uma visão critica da formação e aplicação das leis na América Latina

1. Introdução
Como operadores do Direito, desenvolvemos (ou ao menos deveríamos desenvolver) uma visão mais aguçada dos problemas sociais existentes, de sorte que, a qualquer profissional da área jurídica, certamente aflige o flagelo social representado pela pobreza, pela falta de perspectiva de melhores condições de vida, pela falta de acesso à educação, alimentação, moradia, enfim, de condições mínimas que garantam a vida (não mera sobrevivência) e a dignidade da maior parte do povo Latino Americano, entres os quais, obviamente, o povo brasileiro.
Certamente que não se pode observar de forma impassível os graves problemas sociais dos chamados países periféricos e, em especial, na desvalorizada parte do globo terrestre que nos cabe ocupar. Trata-se, evidentemente, da América Latina.
Aos que se dedicam ao direito, sem que se descuide de uma visão global do problema, como ser humano, cabe, porém, com maior aplicação, a análise da questão sob o prisma da influência da formação e aplicação do direito na manutenção de tal quadro de exclusão.
2. Desenvolvimento
Observa-se claramente que com a chegada dos colonizadores à América Latina, houve uma ruptura do processo de desenvolvimento cultural que então se achava em curso aqui e a imposição dos hábitos, costumes, idéias, enfim, da cultura dos mais fortes, mais bem armados, em relação àqueles que não tinham maneiras de resistir a essa postura, vale dizer, prevaleceu a vontade dos colonizadores, dos conquistadores, em detrimento dos colonizados.
O primeiro ato formal praticado em terras brasileiras, como nos recordamos, foi a realização de uma missa. Isso, em uma época em que o Direito se encontrava em fase de transição daquele de inspiração divina, com o do Direito derivado do pensamento Renascentista. Certamente, porém, havia uma forte influência da Igreja no Estado (para se chegar a tal conclusão, basta lembrarmo-nos dos tratados estabelecidos pelos Papas entre os Estados, p. ex. o Tratado de Tordesilhas)
Era a cultura européia, submetendo a seu jugo, a incipiente cultura indígena que havia em nossas terras. Submissão essa que, evidentemente se fez pela força das armas, importando, muitas vezes em verdadeiros massacres dos nativos.
Aos indígenas aqui existentes, somaram-se, também submetidos à opressão do conquistador, os africanos trazidos como escravos e, de maneira inevitável, surgiram as miscigenações dando origem a um novo povo, que não era mais o poderoso colonizador, mas também não pertencia a nenhum dos originais grupos subjugados (os nativos ou os africanos).
Dessa maneira, esse povo que nascia, surgia sem identidade própria, sem valores seus, impedido de se inserir em qualquer dos grupos existentes. Como bem pondera o Professor Dean Fábio Bueno de Almeida, essa mistura racial e cultural, "fez com que uma massa de mestiços vivesse, por séculos, sem consciência de si, afundada na ninguendade, pois em determinado momento este novo homem compreende que não é europeu, não é mais índio e nem africano: ele compreende-se como um ‘não ser’ ".(i)
O "não-ser" no sentido filosófico onde tal termo equivale a determinado indivíduo ou determinado povo, por ser diferente do "centro", ser equiparado a um nada, a algo inexistente e desprovido de qualquer valor.
Percebe-se que, num momento seguinte, esse grupo identifica-se como algo novo, eles são os brasileiros.
Contudo, essa identidade carece de qualquer referencial sólido que possa amparar esse novo povo, de maneira que do ponto de vista cultural, estrutural, de valores, o brasileiro continua sendo um "não-ser". Essa característica o transforma em uma massa facilmente explorável, vez que pode ser manipulado e conduzido por interesses de poderosos e isso efetivamente ocorre.
O conquistador europeu já possui uma cultura acabada, pronta, de valores bem definidos, a chamada cultura eurocêntrica. São detentores da verdade, ciência, e manipulam como querem o povo conquistado.
A mencionada facilidade de manipulação, decorre do exposto acima, vez que frente a essa angustia por ser considerado um "não-ser", a grande maioria do povo brasileiro assimila tal condição e porta-se como tal, uma utra pequena parte então adota uma postura de mascaramento, passando a "vestir" os costumes e portar-se de acordo com o que pretende o conquistador, o dominador, para poder ser aceito como um "ser", nesse grupo. Essas posturas influenciam a formação dos sistemas sociais, políticos e jurídicos que seguem privilegiando os dominadores em detrimento dos mais frágeis.
E a grande maioria do povo que é um "não-ser", não tem acesso às garantias básicas vez que estas, ainda quando previstas (como atualmente na Constituição Federal), carecem de instrumentos para seu exercício.
A conseqüência, e que perdura até nossos dias, é que existe uma elite que tem o domínio do poder e o domínio econômico, e usa esse povo para seus objetivos particulares, sem dar a menor importância com o destino ou o seu bem estar.
Assim, essa elite dominante, cria mecanismos para impor sua vontade, conseguindo manipular a instâncias formais normativas, bem como dominando a interpretação e aplicação dessas normas, com uma aparência de legitimidade que é totalmente ilusória e fantasiosa. Em verdade, o povo imagina estar sendo objeto de atenção pelo Estado, mas este (o Estado), serve apenas de instrumento a consecução dos interesses dos poderosos. Como já afirmou Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes, em seu trabalho "Apontamentos Sobre Alguns Impactos do Projeto Neoliberal no Processo de Formação de Tutelas Jurídico-Políticas," os Estados latino-americanos nunca passaram de arremedos dos Estados de Bem-Estar Social.
Reiteramos, portanto, que essa situação tem continuidade nos dias atuais, continua havendo uma total exclusão dos direitos sociais, do acesso às necessidades básicas em relação a dois terços da população latino-americana, atuais representantes do povo anteriormente mencionado como "não-ser".
E é face a tal estado de coisas que fazemos uma abordagem crítica; focamos, no desenvolvimento, a visão da parcela de responsabilidade que nos cabe, como operadores do direito, pelo status quoque impera. Apontando o que nos parece contribuir para tal manutenção da miséria e opressão, buscamos fomentar a busca de soluções.
Em princípio, ponderamos que os juristas em geral, sofrem uma total castração de seu senso crítico, constituindo-se em meros repetidores de disposições legais que vêm sendo mantidas pela tradição dos influentes. Recitam a "segurança jurídica" como postulado a ser mantido, ao mesmo tempo que descuram-se de por em prática princípios garantidores básicos dos direitos sociais e individuais e, via de conseqüência, da paz social.
Para trazer a lição de Agostinho Ramalho Marques Neto, vale transcrever que: "Crer que há uma essência verdadeira em si mesma do Direito [...] não deixa de ser confortável. Dá ao estudioso do Direito a impressão que dispõe de um ponto de partida unitário, simples e seguro (um significante primordial, digamos assim) que garantiria de antemão ao terreno jurídico uma solidez suficientemente confiável para que ele por aí se enveredasse por maiores riscos, [...]. Quanto mais o discurso jurídico caminha nesse sentido, mais vai-se tornando e mais fechado em si mesmo vai ficando." (ii). Concluí o mencionado autor que não há tal sistema único de Direito, mas este deve ser construído a partir das diversas fontes possíveis, sem apego exclusivo a nenhuma delas, e aqui acrescentamos, sem o medo de decidir com fundamento único na "letra da lei".
Mas qual é a tão propalada "segurança jurídica"? A manutenção da exclusão social, da miséria, de castas de dominadores, o abismo na distribuição de renda seriam "bens" a serem assegurados pela ordem jurídica atual?
Ensina-se, já nos bancos acadêmicos de graduação, aos estudantes, a declamarem em verso e prosa a "segurança jurídica", como o respeito indiscutível a lei. O jurista deve ser o "soldado da lei", sem se observar que esse termo foi cunhado por J. B. Cordeiro Guerra, em um contexto totalmente diferente do qual se emprega atualmente. Hoje pensa-se que por "soldado da lei" o jurista deve ser um míope social, quando o que o notável jurista quis afirmar com tal locução é que deveria manter-se sereno.
E questionamos: devem ser soldados da lei ou da justiça? Inegável que estas muitas vezes tomam caminhos diversos, por motivos que pretendemos abordar mais adiante.
Afranio Silva Jardim já mencionou a respeito da formação dos profissionais em direito em nosso país que "não desenvolvem uma formação crítica e reflexiva sobre a sua própria existência e o seu papel social a ser desempenhado através da atividade laborativa escolhida. Para tal situação muito contribuem, dentre outros fatores, os currículos antiquados e o tradicional conservadorismo das instituições de ensino de um modo geral." (iii)
Observemos a esse respeito, para ilustrar, princípios constitucionais. Comentemos especificamente um, como o fim social da propriedade, albergado pela Carta Magna, e que encontra-se esquecido, adormecido, não sai do discurso (ou das letras da Constituição Federal), para a vida real, por ausência de uma norma infra-constitucional, que possa por em prática a "matemática" forma de aplicação do direito.
Essa forma "matemática" a que nos referimos é aquela ensinada nos bancos escolares brasileiros onde, de uma forma geral, aplicar o direito traduz-se em aplicação cega da lei.
Transforma-se a lei no "tudo jurídico", "tem que estar na lei", e passa-se a produzir leis desenfreadamente, com finalidades inconfessáveis.
Apenas para se aproveitar o princípio em exemplo, vemos corriqueiramente confronto entre o direito de propriedade, cujos titulares são os donos de terras e o direito a posse de terras para o fim de nelas exercer seu trabalho, este segundo, um objetivo compreendido na gama de direitos sociais do cidadão. A testilha em questão, como é sabido, ocorre entre fazendeiros e integrantes do chamado "Movimento dos Sem Terra" (MST).
Abstraindo-se a questão político-partidária que acabou dominando tais confrontos e que só se presta a retirar a legitimidade de um movimento social, observa-se que sempre a questão é resolvida em favor do proprietário, possuidor de título das terras. Assim o é, posto que em um confronto entre a lei, que assegura ao proprietário os interditos legais, e um princípio constitucional, em relação ao qual não foi editada nenhuma lei, dá-se maior prevalência à norma inferior. É o apego à lei.
Já afirmaram Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier, que "de nada servem declarações de direitos fundamentais estabelecidas ao nível mais alto dos ordenamentos se a sociedade não dispuser de mecanismos capazes de torná-los efetivos. Verifica-se assim uma tremenda defasagem entre a vontade da sociedade, expressa em nível constitucional, e as práticas concretas dos diversos Estados, sempre tendentes a avassalar os direitos consagrados no ordenamento, principalmente no que tange aos direitos sociais." (iv)
E o Poder Legislativo (tanto quanto o Executivo) encontra-se totalmente comprometido com o dominador. Quando não é formado por membros da casta exploradora, é formado por representantes desses que, servindo como instrumentos, são guindados a condição de legislador. Ressalva-se, desde logo, as honrosas e raras exceções que felizmente, existem no seio do Legislativo e, eventualmente, do Executivo.
Ninguém ignora os métodos de obtenção de grande parte dos mandatos parlamentares, que a retórica atribui ao "sufrágio universal" (ainda que os parlamentares, a rigor, recebam "sufrágio proporcional"). A manutenção dos "currais eleitorais". Outrora com o "coronelismo", o Senhor de Fazendas, que decidia sobre a vida e a morte dos seus empregados e familiares (empregados?).
Falamos no passado, mas sabemos que em algumas regiões ainda existem tais atrocidades. Onde um rancho de sapé e um pouco de farinha, são suficientes para induzir o eleitor a conceder o mandato ao seu próprio algoz, travestido em benfeitor. E pobre daquele que ousar questionar a "bondade" do candidato-patrão, irá encontrar-se com o Criador mais cedo, carregado pela fumaça de seu rancho, já queimado, juntamente com sua família, de regra de numerosa prole.
Em pequenas cidades são aqueles "favores pessoais" (que nada têm de favores), o chamado "assistencialismo", a dentadura do favelado, a caixa-d’água do barraco, a cesta básica do desempregado, a compra de um remédio, e tantos outros expedientes que demonstram a utilização do poder econômico para a imposição da "obrigação de votar" em dado candidato. Sem se falar no uso da "máquina administrativa".
Mas nos grandes centros e nas regiões mais desenvolvidas desse nosso imenso país, não é mais esse (ao menos não exclusivamente), o método utilizado para a perpetuação do dominador no poder (e não é diferente com nossos irmãos latinos, apenas concentramos o enfoque sobre o Brasil, posto que é nossa realidade mais próxima).
É claro que seria humanamente impossível manter-se o método arcaico de dominação, com a explosão populacional e os conseqüentes problemas materiais para se impor tal método a milhões de pessoas, concentradas em grandes centros e possuindo um pouco mais de acesso à informação.
Agora quando vivenciamos uma época em que, como já se definiu, ocorreu uma compressão do tempo e do espaço, em que a velocidade é supersônica e nos permite atravessar de um continente a outro em poucos minutos (quando os colonizadores levavam meses), a informação torna-se a chave da dominação.
O indivíduo possui em sua casa um aparelho de televisão, um aparelho de rádio, e pelas ondas eletromagnéticas entra em sua casa todos os dias, uma enorme quantidade de informações. Ele sequer tem condições de decodificar todas aquelas notícias e acontecimentos, mas ele ouve, ele vê, e isso influi em seu ânimo.
Junto com a informação, vem a tendência de quem produz, veicula ou faz veicular o noticiário. E o "caboclo" do sertão que ouve seu rádio, o operário morador da favela e mesmo o indivíduo de classe média, em regra, acredita no que ouve como verdade absoluta. Não teve (e certamente não terá tão cedo) desenvolvido o espírito crítico, "o ceticismo crítico ou a dúvida metódica da qual falou Descartes" (v).
Ele ouviu no noticiário, ele leu nos jornais, e assim, para ele é verdade absoluta. São os dominadores utilizando-se do meio que deveria ser mais o respeitado, pela sua importância: é a utilização da imprensa.
Lembramo-nos do que já afirmou o impagável Lima Barreto, em sua obra literária "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" a respeito da imprensa, pinçando, entre tantos, um pequeno trecho: "é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também... É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São Grandes empresas, propriedade de venturosos donos destinadas a lhes dar o mínimo sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses..." (vi). E veja-se que esse romance data de 1908.
E fazemos um parêntesis posto que não é o escopo do presente trabalho fazer uma abordagem crítica do trabalho da imprensa. Não se discute aqui a sua importância.
A imprensa, os meios de comunicação, são indispensáveis à sociedade e a esperança da formação de uma opinião crítica do povo. Se utilizados com ética e consciência, são uma forma extremamente positiva de fiscalização, de freio aos apetites dos gananciosos, poderosos, desonestos, etc.
O que se aponta e se espera, é um maior controle, uma maior ética na veiculação da informação, uma fiscalização que pode ser exercida em forma de autocontrole dos meios de comunicação, diante mesmo dessa importância que têm. Uma utilização responsável e conscenciosa da comunicação e da informação.
Toda notícia tem uma certa tendenciosidade, mas quando esse comportamento parcial é explícito, aberto, inequívoco, não causa maiores danos, ao revés, cumpre seu papel, informa. O problema surge quando o interesse vem oculto, de forma subliminar, como se imparcial fosse a matéria. Aí sim, torna-se perigosa e manipuladora a informação.
Quem ignora que uma rede de televisão, em nosso país, recentemente elegeu e, em seguida, depôs um Presidente da República. E em nenhum momento deixou transparecer que aqueles eram seus objetivos, mas ao contrário, abordava fatos que induziam a população a adotar determinado comportamento, como se fosse uma narração imparcial.
Mas não é somente através da notícia que se manipula o povo nestes tempos de globalização (e odiamos o termo). Manipula-se também, e talvez principalmente, através da criação de padrões a serem seguidos. Padrões de beleza, padrões de moda, padrões de comportamento, demonstrando sempre que dado padrão é "o bom", "o certo" e outro "o errado".
Voltamos ao "ser" e ao "não-ser"? Ou nunca saímos dessa condição de "não-ser"?
Explora-se a falta de identidade cultural de nosso povo, induz-se à coletividade a espelhar-se naquilo que é pregado como certo.
Cria-se paulatinamente com isso, um pensamento maniqueista na comunidade, mostrando o explorador como o benfeitor e aqueles que se opõe a ele como os maus, que devem ser combatidos e destruídos.
É o "lobo em pele de cordeiro". Muda-se o método, mantém-se os objetivos e alcançam-se os resultados.
Muda também a metrópole, antes Portugal, agora o chamado Primeiro Mundo, com especial predomínio dos Estados Unidos da América.
O referencial monetário é o dólar americano, a música é do mesmo pais, a língua mundial o inglês, entre tantos outros pontos que poderiam ser mencionados como demonstração da dominação.
A modernidade é a globalização, o enfraquecimento do Estado (entendido esse como barreira aos interesses econômicos). O discurso é que os orgãos públicos são onerosos, ineficientes, superados. Tem-se que privatizar todas empresas estatais (ainda que para serem compradas por outras estatais, mas estrangeiras). O funcionário público, não é mais visto como um prestador de serviços, um trabalhador como qualquer outro, mas um parasita a ser perseguido e exterminado.
Os serviços públicos são sucateados, não por acaso, mas para confirmar a idéia difundida de imprestabilidade do setor, e deles se servem somente aqueles segmentos excluídos e marginalizados da população (tome-se a saúde pública como exemplo). Quem tem poder aquisitivo, deve ter bom atendimento, mas deve também dar lucro aos organismos privados (seguros saúde, cooperativas médicas, etc.)
Se o trabalhador da iniciativa privada tem direitos inferiores aos dos funcionários, o discurso não é o de melhorar os direitos daqueles, mas de aniquilar-se os destes. É uma canalização de ódio, tarefa extremamente fácil em um país de tantos problemas.
E a ignorância, a falta de conhecimentos e de espírito crítico do povo são mantidos como forma de facilitar extremamente essa manipulação de idéias.
Desestruturam-se todas as empresas e serviços públicos, exceto aqueles setores que interessam aos conglomerados financeiros privados, como bem ponderou Óscar Correas: "Porque nunca se han propuesto achicar el estado comandados por los jerarcas del capital - o por sus empleados -, porque sin ese estado no podrían hacer tan buenos negocios. Tampoco al estado casado con las grandes empresas telivisivas e radiales, sin el cual tampoco podrían estupidizar el imaginario colectivo y reproducir esta ideología insulsa." (vii)
O próprio Movimento dos Sem Terra é explorado para enfraquecer o que é público. Mesmo sem nenhum interesse na causa dos trabalhadores, os meios de comunicação em massa não se cansam de mostrar a violência da polícia e a ineficiência do judiciário em relação aos menos favorecidos.
Evidentemente que existem várias mensagens subliminares passadas em tais informações, entre as quais podemos identificar algumas: pretende-se, em primeiro lugar, mostrar a existência de um "perigoso movimento contra a propriedade privada" e evidentemente fazer com que a população se antipatize com tal causa de "desordeiros", ainda que não se diga isso explicitamente; em segundo lugar, mostrar como os órgãos públicos são ineficientes no desempenho de seus misteres; em terceiro, soa como um aviso aos cidadãos que, aqueles que pretendem se insurgir contra a ordem estabelecida, por mais injusta que a considerem, serão objeto de execração pelos meios de comunicação como se fossem "foras-da-lei" e sentirão o peso do aparelho repressivo do Estado, não lhes sendo garantido qualquer direito, mesmo pelo Poder Judiciário.
Nos detemos aqui, no comentário dos meios de dominação, para não fugirmos por demais ao tema proposto.
Assim, com toda sorte de manipulação, seleciona-se (negativamente) a grande parte dos seus membros e mantém-se o domínio das rédeas do Poder Legislativo, que continua em uma produção desenfreada, daquela que seria a apregoada fonte quase exclusiva do direito: a lei (na retórica, pois que na prática se converte em fonte única). Umas para reforçar o domínio das elites, outras, para trazer a aparência, a ilusão de que os direitos e necessidades do povo estão sendo tutelados.
Criam-se normas antagônicas umas em relação a outras, com o escopo único de, travestido de interesse em "atender ao clamor popular", manter o verdadeiro estado de amortecimento, de letargia em relação à realidade, no qual encontra-se mergulhado o povo brasileiro como, de resto, todo o povo latino-americano.
Outra definição não nos ocorre para a situação do povo em relação ao poder em nosso país, senão a de um sono doentio, duradouro e profundo do qual não pode despertar, não por sua culpa, não por falta de interesse, mas por manobras maquiavélicas de sucessivos déspotas que, desde a conquista dessas terras, vem mantendo o poder para um grupo exclusivo de privilegiados ou a serviço desse grupo.
Os métodos de engodo, de se induzir o povo explorado em erro, mudam e se adaptam com as naturais mudanças do tempo, mas os objetivos sempre são alcançados.
E aumenta a perversidade do dominador, a eficácia e competência demonstrada na manutenção de seus privilégios, que demonstra acima de qualquer dúvida, que a manutenção do grupo de poderosos não é acidental, não é casual, mas é muito bem planejada e preparada, estudada nos detalhes e com os lances devidamente antecipados, tal qual um mestre enxadrista planejando os lances futuros, retirando qualquer chance de vitória do seu adversário, nesse contexto, um mero aprendiz.
Daí, dessas manobras perversas utilizadas para a manutenção dos privilégios e, de conseqüência, para a produção legislativa, questionamos a legitimidade das leis emanadas desse poder legislativo.
Ora, a idéia inicial do "Contrato Social" da disposição, por parte do indivíduo, de parcela de seus direitos em favor do Estado, foi de assegurar o bem comum, a melhoria da qualidade de vida em sociedade e, conseqüentemente, de cada um de seus membros.
E o que ocorre em nosso país, embora com um "contrato social" que alberga vários princípios garantidores de direitos e liberdades individuais (representado tal "contrato social", evidentemente, pela Constituição Federal), é uma flagrante violação dessa relação indivíduo-Estado, é a quebra do "contrato social".
De sorte que, embora revestida a produção legislativa de uma aparente legitimidade, essa aparência dissolve-se perante uma análise mais atenciosa, que demonstra ser tal legitimidade meramente formal, dissociada daquela que adviria da manifestação de uma vontade livre.
Poderia se comparar o voto do eleitor manifestado nessa situação, a um ato jurídico viciado, como no Direito Civil, pelos vícios do consentimento (vez que seria induzido em erro pelo e quanto ao candidato).
Sabe-se que é um dos elementos do ato jurídico, para sua validade, para que produza um resultado jurídico, a liberdade na manifestação de vontade, o que não ocorre com o eleitor brasileiro.
Na lição do sempre festejado Silvio Rodrigues, "Erro é a idéia falsa da realidade, capaz de conduzir o declarante a manifestar sua vontade de maneira diversa da que manifestaria se porventura melhor a conhecesse." E mais, não é um mero erro, mas um erro substancial, compreendido este como "aquele de tal importância que se fosse conhecida a verdade o consentimento não se externaria." (viii) No caso do voto, o erro seria sobre "as qualidades essenciais da pessoa a quem a declaração se refere." (ix)
Não se pode discutir o caráter de ato jurídico do voto. A esse respeito, já escreveu José Afonso da Silva "O voto é o ato político que materializa, na prática, o direito subjetivo público de sufrágio. É o exercício deste, como dissemos. Mas sendo ato político, porque contém decisão de poder, nem por isso há de se negar natureza jurídica. É ato também jurídico." (x) - grifamos
Se na seara do Direito Privado, onde de regra os direitos tutelados são disponíveis, tal vício é capaz de invalidar o ato jurídico, com muito mais razão em sede de Direito Público, temos como viciado e de nenhum valor o mandato outorgado aos legisladores, por meio do voto do eleitor que atuou, nessa sua especial forma de consentimento, por encontrar-se em erro insuperável.
Voltamos a trazer a lição de José Afonso da Silva quando afirma que "Para que o voto constitua legítima expressão da vontade do povo, para que seja função efetiva da soberania popular, ‘deve revestir-se, como disse Meirelles Teixeira, de eficácia política e ainda que represente a vontade real do eleitor..." (xi) - grifo não original.
Ora, evidentemente que não há legítima vontade de um eleitor que imagina estar votando em alguém com determinado conteúdo moral e com certas qualidades pessoais e dado ideário, quando em verdade quem esta sendo eleito é pessoa totalmente diversa, apenas o invólucro físico, o corpo, tanto quanto o nome, a identificação desse corpo e que são os mesmos.
Para utilizarmos um pouco de ironia, seria o caso dos eleitores reclamarem junto aos órgãos de defesa do consumidor! Afinal o produto (e hoje a propaganda política é toda desenvolvida por agências de publicidade) anunciado não corresponde ao que foi "adquirido".
Além dessa primeira e fundamental ilegitimidade dos legisladores, que já retira aquela aura de "res sacra" que se atribui à lei em nosso país, há que se observar ainda, a ilegitimidade da própria norma.
Visto ser a finalidade do Estado, em última análise, o bem comum, o bem estar da sociedade, a lei, que pauta os indivíduos e a própria atividade estatal, deve sempre estar direcionada a esse propósito. O saudoso Hely Lopes Meirelles, nos ensinava que "Os fins da administração pública resumem-se num único objetivo: o bem comum da coletividade administrada. Toda atividade do administrador público deve ser orientada para esse objetivo. Se dele o administrador se afasta ou se desvia, traí o mandato de que está investido, porque a comunidade não institui a administração senão como meio de atingir o bem-estar social. Ilícito e imoral será todo o ato administrativo que não for praticado no interesse da coletividade." (xii)
Ora, utilizando-nos novamente da analogia, como fizemos acima em relação ao Direito Civil, e agora, com o Direito Administrativo, é valido lembrar que o ato administrativo que é praticado com desvio de finalidade é ineficaz. A lei, embora não seja, evidentemente, um ato administrativo, tem como finalidade assegurar a satisfação física e moral dos integrante de dada sociedade e, violando tal finalidade, certamente perderá a legitimidade.
Finalmente, buscando no Direito Constitucional, o conceito de legitimidade da lei, nos socorremos novamente dos ensinamentos de José Afonso da Silva quando afirma que "legitimidade e legalidade nem sempre se confundem. Lembra bem D’Entrève: ‘Legalidade e legitimidade cessam de identificar-se no momento em que se admite que uma ordem pode ser legal, mas injusta’. Propõe, por isso, a recuperação do liame entre legalidade e legitimidade, sob bases diferentes, a partir do abandono da noção puramente formal da legalidade, definindo-a como ‘a realização das condições necessárias para o desenvolvimento da dignidade humana’, como quer a nossa Constituição (art. 1º, III), pois o ‘princípio da legalidade não exige somente que as regras e as decisões que comportem o sistema sejam formalmente corretas’. Ele exige que elas sejam conforme a certos valores, a valores necessários ‘à existência de uma sociedade livre’, tarefa exigida expressamente do Estado brasileiro (art. 3º, I)."
Certamente que a lei, que não cumpre a finalidade última da existência do Estado, também não pode ter validade.
Do exposto, a conclusão lógica que se extraí é que as leis brasileiras padecem de falta de legitimidade, a um, por vício na formação do Poder Legislativo e, a dois, pelo desvio da finalidade que deve nortear sempre a atividade de qualquer poder do Estado, que é o bem do povo.
É verdade que muitas leis, embora emanadas de um poder legislativo com sérios problemas de legitimidade, conforme abordamos anteriormente, cumprem a finalidade precípua da norma, que é a busca do bem estar social, assim, certamente que adquirem legitimidade pela aceitação da própria sociedade. Há uma legitimação direta e posterior da norma.
Mencionando a possibilidade da legitimação posterior, embora em sede de constituição, faz sólida consideração Arthur Pinto Filho em seu trabalho "Constituição, Classes Sociais e Ministério Público", que tem perfeita aplicação ao presente estudo, sendo válida também quanto a legitimação posterior de lei. Diz referido autor que "Pode ocorrer perfeitamente, em determinados casos, a legitimação de uma Constituição, situação que ocorre sempre que um determinado texto, ao entrar em vigor tenha escassa legitimidade. Mas, ao depois, mercê de uma série de fatores, acaba por encontrar o mesmo texto, na mesma sociedade, um grau razoável de apoio, de legitimidade." (xiii)
Esse portanto, o panorama por nós vislumbrado, em relação ao nosso ordenamento jurídico.
. Conclusão
Evidentemente que um problema tão complexo quanto a crise das instituições jurídicas dos povos latino-americanos e, especialmente, o brasileiro, não permite que sejam encontradas soluções facilmente, especialmente em âmbito de um trabalho tão modesto quanto o presente. Algumas ponderações, contudo, podem ser feitas em sede de conclusão, até para que possam ser pensadas e discutidas, servindo para, através do exercício da dialética, ou talvez melhor colocando, da analética (posto que considerando os problemas latino-americanos), contribuir para a o aperfeiçoamento das instituições e, conseqüentemente, para melhorar as condições de vida de um povo tão sofrido quanto o nosso, que em um país dotado das maiores riquezas naturais do globo, permanece, em sua maioria, em condições de pobreza ou miséria.
Demonstrando uma fé espetacular no ser humano, o Professor Dean Fábio Bueno de Almeida, no trabalho já mencionado anteriormente (v. nº I), entende que a solução dos problemas passa pela reconcilação dos homens em busca da harmonia, beleza e amor; pela efetivação do "Direito Libertador", onde devem predominar "a aceitação mútua entre os indivíduos, com respeito um pelo outro como legítimo ‘Outro’, isto é, como diferente". Assevera ainda o mencionado Professor que "este Direito libertador é simbolizado por operadores que têm a capacidade de ver, julgar e agir; por operadores que constituem o peso e o contrapeso nas relações sociais que envolvem o homem latino-americano (explorado, oprimido, mesmificado) e toda Totalidade opositora (exploradora, intolerante, desumana)." Avalia ser ainda utópico o Direito Libertador o referido Professor.
Se é utópico é extremamente válido, pois parafraseando o que já disse o grande escritor Eduardo Galeano, em obra que lamentavelmente não temos, mas de cuja idéia nos lembramos, que assevera ser a utopia como a nossa sombra, quando caminhamos em direção a ela, ela se afasta de nos, e então, indagado sobre qual seria sua utilidade, responde o escritor que serve justamente para isso: para fazer caminhar.
Não fazemos aqui considerações se é utópico ou não o proposto Direito Libertador, mas as idéias são magníficas e, certamente, fará com que seja trilhado um longo caminho em sua busca. Nesta singela exposição que ora fazemos, pretendemos dar um primeiro passo, ainda que um passo pequeno, desequilibrado talvez, como os passos de um infante que inicia a andar, de pouca valia, mas pretendemos, ainda que de maneira ínfima, contribuir com a mudança do status quo vigente no país.
Somos, contudo, um pouco mais céticos quanto à bondade dos homens e da possibilidade da reconciliação universal entre a humanidade, pelo menos no estágio atual. Esperamos estar errados e que se concretize tal concerto da humanidade, mas até que ocorra, pretendemos, à guisa de conclusão, apontar algumas opiniões para a busca, em sede de Direito Processual, e especialmente de Direito Processual Penal, de amenizar os graves problemas existentes.
No sentido de apontar para onde caminham nossas idéias, temos que fixar antes, um outro grande problema existente em nosso país. Trata-se da mentalidade existente de descumprimento das normas regulamentadoras como coisa "natural", "normal", desde que seja mais favorável para o indivíduo em dado contexto, no que já se denominou popularmente de "Lei de Gerson".
É o fenômeno de cada indivíduo achar que a regra pode ser descumprida, desde que em seu próprio benefício. A mentalidade individualista. E se poderia pretender justificar tal fato, tal regra de comportamento, com a apontada ilegitimidade das leis.
Mas certamente tal justificativa seria falaciosa e não corresponderia à realidade. Sim, vez que não se pode imaginar que todo o ordenamento jurídico brasileiro seja composto de leis ilegítimas, inválidas. Há que se concordar que inúmeros dispositivos legais são perfeitamente adequados à realidade e necessários a vida em sociedade, e mesmo assim são descumpridos diariamente.
Poderia se argumentar, então, que um extremo estado de miserabilidade faria surgir tal fenômeno, e novamente iria se incidir em erro, pois que é verificável que o triste fenômeno do "jeitinho brasileiro" ocorre em todas as camadas sociais, da mais pobre até a mais abastada.
De sorte que podemos admitir que, sem a menor dúvida, há uma explicação social para o surgimento desse comportamento individualista e insubmisso às normas gerais do povo brasileiro. E evidentemente, tem seu nascedouro na condição de "não-ser" filosófico que o marca desde a origem, posto que, sentindo-se excluído do grupo principal, entendia esse indivíduo equiparado a algo inexistente, que também não teria a obrigação de se sujeitar às normas de convívio social. E isso passou a ser um comportamento geral e, sejamos francos, uma desonestidade institucionalizada.
É certo que, para postularmos qualquer tipo de controle sobre as ilegitimidades substanciais existentes no nosso ordenamento jurídico, temos que estar atentos a essa face de nossa civilização, visto que poderia se criar uma nova forma, achar uma válvula de escape para o descumprimento de normas legítimas e necessárias (ainda que com vício de origem como mencionado na exposição mas legitimadas posteriormente pela necessidade social).
Portanto, desde logo ponderamos que, embora pudesse sinalizar para tal desfecho o desenvolvimento do trabalho, não postulamos, de maneira alguma, o insurgimento contra as leis válidas e em vigor pelos operadores do direito, como regra de atuação. Ao contrário, entendemos que a normatização é uma vitória da civilização contra diversas formas de violação de direitos sociais e individuais (embora já tenha servido para justificar outras tantas violações desses mesmos direitos), de forma que encaramos a lei como uma conquista que deve ser preservada e respeitada, até que se obtenha uma maneira mais perfeita para garantia de direitos.
O que não podemos admitir, é que se prossiga na aplicação formalista da lei que vem sendo feita por nossos operadores do direito, com a manutenção de injustiças sociais, com violação de inúmeros princípios constitucionais e mais que constitucionais, universalmente reconhecidos como indispensáveis à vida digna dos seres humano.
Postas tais considerações, voltamos o foco ao Direito Processual Penal.
Evidentemente que com a obtenção de um direito que realmente alcance o patamar desejado, permitindo que todos os indivíduos possam ter uma vida provida dos elementos morais e materiais necessários, a tendência de ocorrerem lesões a bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal é de ser muito menor. Não que a pobreza seja causa única da criminalidade, evidentemente, mas certamente, a miséria tem fator importante no comportamento criminoso, muitas vezes, impondo-o ao ser humano miserável, sem alternativas para este.
Em sede de Direito Penal, matéria para qual temos como instrumento de aplicação do Direito Processual Penal, objeto deste trabalho, há que se eliminar a seletividade no seu destinatário, fazendo com que os excluídos não sejam a sua única "clientela".
Aliás, como já afirmou Raul Zaffaroni em palestra, o Sistema Penal é constituído e treinado exclusivamente para receber pobres, de tal maneira, que fica completamente sem saber o que fazer quando um indivíduo pertencente à classe média ou alta é aprisionado. Aliás, como afirmou o Professor argentino, isso só ocorre, quando o indivíduo mais abastado entra em choque com alguém também da classe dominante, que tinha mais poder que ele e, sendo perdedor na testilha, acaba sendo levado ao cárcere.
E a proposta para buscarmos minorar as injustiças cometidas, especialmente em sede de Processo Penal, que é o tema em apreço, entendemos ser indispensável, a utilização desse processo, como um instrumento, não só de se impor a pena, mas além e acima disso, de preservar-se cuidadosamente os direitos e garantias daqueles que estão sendo submetidos ao crivo do Poder Judiciário, bem como o controle das leis, dentro do âmbito desse processo e, agora sim, negando validade às mesmas se, demonstrado inequivocamente sua ilegitimidade.
Tomamos aqui algumas lições do Sistema Garantista, a respeito do qual disserta Luigi Ferrajoli(xiv), ser um modelo de direito em que se pretende a submissão de todos à "lei constitucional". Tal Sistema, prima pelo respeito à lei, porém, sem a cegueira jurídica à qual aludimos no desenvolvimento destas linhas.
Ensina ainda Ferrajoli, que pretende o garantismo também, a submissão dos interesses privados à lei, que historicamente se destinou a conter o poder do Estado, até porque nascidos os direitos e garantias individuais justamente para proteger o indivíduo do Estado absolutista. Denota a necessidade hoje, de proteção contra os impérios financeiros privados, detentores de poderes imensos.
Pois bem, esse sistema mencionado, que tem no apego à lei seu ponto chave, permite se possa discernir entre a lei que apenas vigora e aquela que, além de vigorar, efetivamente tem validade.
Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier (n. III), no trabalho já citado acima, demonstram de forma bastante clara essa diferenciação, conforme trecho que transcrevemos:
"Os princípios do modelo garantista do Estado e Direito (que na análise de Ferrajoli se confunde com o moderno Estado de Direito e sua concepção jurídica) são passíveis de concretizá-lo somente através da articulação do ordenamento em diversos níveis normativos e da dissociação entre vigência e validade das normas. A noção do dever ser do direito presente na obra, identificada pelo conceito de validade (que deixa de ser meramente formal e assume dimensão substancial), característica, segundo ele, dos Modernos Estados de Direito, possibilita a crítica dos conteúdos das prescrições jurídicas. "
"A reformulação do significado de validade é o ponto central da obra de Ferrajoli, que de existência (para Kelsen), passa a ser divido em dois conceitos distintos. O de existência ou vigência, que respeita à validade formal da norma, e o de validade propriamente dito, respeitante à validade material. [...]"
"O paradigma do Estado de Direito, dessa forma, além de conferir à teoria do direito o papel normativo-prescritivo, impõe um papel crítico-normativo à dogmática jurídica, que se exprime através dos juízos de validade das normas, que são qualitativamente diferente dos juízos de existência, apesar de serem ambos opináveis e valorativos."
"O que importa ressaltar é que o jurista pode criticar internamente o ordenamento, dado que podem existir, e de fato existem, normas vigentes e inválidas. [...]"
"Como já assinalado, a sujeição do direito ao direito, é gerado da dissociação entre a vigência e a validade das normas, sua racionalidade formal e material, segundo Weber. Dessa forma, é a própria possibilidade de existir um direito substancialmente legítimo que é a aparente paradoxal condição sine qua non da democracia substancial. [...]"
"Contra a falácia normativista (o direito vigente é tido como válido), em que a crença na razão jurídica ultrapassa o âmbito do fenômeno jurídico culminando numa simples contemplação e quase adoração do Direito vigente, ou da resignação realista, onde o direito eficaz é tido como válido, Ferrajoli contrapõe a uma nova concepção de realidade. [...]". "Assim, a identificação de normas inválidas, pela não garantia dos direitos fundamentais, constitui-se numa luta pela eficácia destes direitos, uma luta por cidadania." (CADEMARTORI, III). - Grifos não originais.
De se anotar, que o garantismo tem como pressuposto, como paradigma para a validade da lei, o respeito aos princípios constitucionais.
E essa é a nossa postulação também, desde o início do presente texto. É certo que nem mesmo a Constituição Federal, em nosso país, é um porto seguro de direitos e garantias sociais e individuais. É bem verdade que as críticas dirigidas ao Poder Legislativo são também aplicáveis ao Poder Constituinte. Que reflete a Constituição Federal uma série de intenções não do povo, mas da elite dominante que conseguiu um maior número de representantes nesse Poder.
Não se descura também, que já foi a Magna Carta, em oposição ao cognome lhe atribuído de "Constituição Cidadã", chamada de "Constituição Cortesã", justamente pela influência acima mencionada.
Não é menos certo que essa insegurança em sede constitucional é demonstrada pela aprovação de nada menos que vinte e sete (27) Emendas à Constituição Federal em pouco mais de 11 anos de sua vigência, já podendo ser chamada, como era a anterior, de verdadeira "colcha de retalhos".
De se observar, porém, que constitui a Carta Magna vigente, um significativo avanço em relação a tudo que já tivemos anteriormente em nosso país. Que existem princípios ali abrigados, que podem melhorar significativamente a vida dos excluídos e, de conseqüência, da nossa sociedade.
Importante também, lembrar-se que em sede constitucional, tais princípios, em regra, são imutáveis, salvo por Poder Constituinte Originário, e que por isso mesmo, não são nem serão tão facilmente alterados, apesar de declarações absurdas de Presidentes de Legislativos prestadas a imprensa, como todos nos lembramos, quando se afirmou que se era vedado pela Constituição ele a mudaria.
Daí a importância de uma nova forma de se encarar o ordenamento jurídico, sem o deslumbramento pela lei.
Há que se buscar a aplicação da lei justa, com vigor, e da mesma maneira e sem destemor, dentro de um processo de cunho garantista, a negação da lei injusta, que viole princípios constitucionais.
De se observar que a estrutura das instituições e a ideologia jurídica vigente são direcionadas para o desleixo ao princípio constitucional, especialmente aqueles que têm como escopo a criação ou resguardo de direitos sociais e que, criado num primeiro momento para atender ao clamor das massas, logo a seguir, estando em vigor a constituição, é tido como um princípio programático que, alegam os operadores do direito hoje (embevecidos pela ideologia acima mencionada), dependerá de posterior regulamentação, que sabemos nunca virá.
E mesmo a lei que o contraria não é tida, de regra, como inconstitucional, inconstitucionalidade essa de difícil apuração. Tendo a lei presunção de constitucionalidade e sendo o controle da constitucionalidade em nosso país eminentemente concentrado e de pouquíssimo uso (o controle difuso tem menor aplicação ainda), restam inúmeros diplomas legais atentatórios à constituição e, o que é pior, atentatórios à dignidade humana, sendo respeitados, aplicados e "endeusados" pelo tradicional método de operação do direito adotado em nosso país.
Ora, como bem expôs o Professor Alvacir Alfredo Nicz, em magnífica aula inaugural no Curso de Especialização em Processo Penal da PUC-PR, em 17 de março de 2000, não há dúvidas que são os princípios os pontos mais importantes do ordenamento jurídico, vez que por princípio entende-se a base, o fundamento, o comando normativo do sistema. É o início, sobre o qual o interprete deve se debruçar, para aplicar as diversas formas interpretativas existentes e extrair o exato comando existente. É o mandamento nuclear do sistema.
Eles se irradiam e imantam o sistema de normas, são núcleos de valores.
Como ignorá-los então, quando são constitucionais, para aplicação de norma inferior, que é a lei?
O Professor Afranio Silva Jardim, já mencionou: "Neste primeiro momento pugna-se pela aplicação integral dos princípios sociais cristalizados na Constituição de 1988. Por que desrespeitá-la em favor de leis ordinárias defasadas no tempo, numa postura contraditória até mesmo na perspectiva do tão cultuado positivismo jurídico?" (JARDIM, II)
Assim é que voltamos a afirmar, deve-se utilizar o instrumento de garantia de direitos por excelência, na aplicação deste, que é o processo penal, na sua integralidade, e no interior desse processo, buscar pelo cumprimento dos princípios constitucionais, ainda quando importe em negar validade à lei em vigor. Mas não basta a postura ideológica, senão, o despertar para na vida real, perquirir em todos os casos possíveis, se não há, ali, um princípio constitucional sendo esquecido, até mesmo, pela falta do costume em sua aplicação.
Há que se buscar no processo, a sua instrumentalidade no sentido exposto por Cândido Rangel Dinamarco, em sua obra "A Instrumentalidade do Processo" e mencionada por Aury Celso Lima Lopes Junior(xv) no trabalho denominado "O Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Garantista", onde afirma que deve ter tal instrumentalidade um caráter negativo, bem como um caráter positivo.
O caráter negativo diz respeito à "negação do processo como um fim em si mesmo e significa um repúdio aos exageros processualísticos e ao excessivo aperfeiçoamento das formas (instrumentalidade das formas, com relevantíssimas conseqüências no sistema de nulidades)." - Grifamos
Já do ponto de vista da instrumentalidade positiva, pretende o festejado Professor, se observe extrair do processo "o máximo proveito quanto à obtenção dos resultados propostos,...,que ele deverá cumprir integralmente toda a função social, política e jurídica." - Grifo nosso.
Somente assim, poderá se estar atuando para um direito mais justo e mais humano, se poderá fazer da passagem de cada um de nós, operadores do direito, sobre esta terra, não um mero exercício insípido de repetição de formalidades legais, cultores e instrumentos de manutenção da tradição de exclusão que sempre imperou em nosso país; mas poderemos ser, efetivamente, agentes transformadores de uma realidade social, realidade esta diante da qual, ninguém com um mínimo de princípios pode manter-se impassível.
NOTAS
ALMEIDA, Deam Fábio Bueno de. O Sistema Jurídico Brasileiro e sua busca por um pensamento jurídico próprio. Curitiba, Editora Universidade Champagnat da PUCPR. Revista Verba Iuris, Ano I, nº 2, Março de 1999.
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JARDIM, Afranio Silva. Direito Processual Penal, pág. IX, 5ª edição, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1995.
CADEMARTORI, Sérgio. XAVIER, Marcelo Coral. Apontamentos iniciais acerca do garantismo, extraido do web site "http://www.direitopenal.adv.br/artigo45.htm", em 28.03.2000.
BAZARIAN, Jacob. O Problema da Verdade, pág. 86. São Paulo, Edições Símbolo, 1980.
BARRETO, Lima. Publifolha - Divisão de Publicações do Grupo Folha, São Paulo, 1997.
CORREAS, Oscar. El Neoliberalismo en el Imaginario Jurídico, Direito e Neoliberalismo, pág. 5, EDIBEJ, Curitiba, 1996.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol 1, pág. 178/179, Ed. Saraiva, 1981.
_________________. Idem, pág. 181.
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________________. Idem, pág. 317.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 18º edição, pág. 81, Malheiros Editores Ltda, São Paulo, 1993.
PINTO FILHO, Arthur. Constituição, Classes Sociais e Ministério Público, Livro de Teses do 13º Congresso Nacional do Ministério Público, vol 3, pág. 359, Curitiba, 1999.
FERRAJOLI, Luigi. Entrevista concedida a Fauzi Hassan Choukr, com o tema A teoria do garantismo e seus reflexos no Direito e no Processo Penal e divulgada pelo web site http://www.direitopenal.adv.br, retirada em 28.03.2000.
LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumentalidade Garantista, trabalho extraido do web site http://www.jus.com.br/doutrina/instgara.html, em 28.03.2000
Sobre o autor:
Silvio Couto Neto